sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Diários de Calico #12

Creio, meus fiéis companheiros, ter chegado a hora de finalmente vos desvendar o final desta tempestuosa história de amor. Faço-o enquanto lá fora a chuva cai impiedosa sobre o mundo não deixando escapar nada à sua fúria; foi numa noite tal e qual como esta que Patrick Williams irrompeu pelo quarto de De Lil como se o fim do mundo estivesse eminente. Não disse nem uma palavra, simplesmente tomou a sua mão e confessou-lhe que não aguentava nem mais um momento sem poder saber que para sempre a teria por companheira, que não aguentava a incerteza de quando seria agraciado pelo seu próximo beijo ou tão somente pelo perfume dos seus cabelos tão selvaticamente encaracolados. Clarence estava sem reacção, era como se do nada todo um novo mundo tivesse sido revelado mesmo á sua frente, não foi capaz de responder… apenas foi capaz de se entregar nos braços de Williams.

Calico nem queria acreditar, na manhã seguinte, no convite que se encontrava afixado na porta do Saloon, o convite para o casamento de Patrick Williams e Clarence De Lil. A estupefacção era geral, nunca ninguém fora sequer capaz de imaginar que um homem tão aparentemente vil quanto Bill pudesse ser apologista do casamento mas a verdade meus amigos é tão-somente esta: Williams não era um homem novo, mas sentia-se como tal.
A cerimónia teria lugar passados sete dias na pequena capela de Calico que parecia ser tão pequena para selar um amor tão intenso e incerto quanto o daqueles dois.

O dia chegou e a pequena e humilde capela parecia agora capaz de rivalizar com as mais belas e requintadas Catedrais românicas que povoam essa França ou essa Itália. Enormes arranjos florais adornavam os bancos, tapetes vermelhos estendiam-se ao longo da nave, fitas do mais brilhante cetim caíam deste o tecto em direcção ao chão e o altar esse nem parecia o mesmo tal era o cuidado com que havia sido preparado.

Clarence havia-se decidido por não usar uma cor tão neutra quanto o Branco, ao invés disso optara por um magnífico vestido de veludo escarlate que lhe assentava na perfeição, era arrojado mas mantinha a classe e o glamour a que havia habituado aquela pequena cidade.
Williams optara por usar um fraque preto com uma camisa branca e um gravatão preto que tão popular era entre os membros da realeza britânica. No bolso do peito optara por levar uma rosa branca em vez do popular lenço dobrado em losango.
Apesar da escolha pouco ortodoxa que ambos fizeram há que admitir que a combinação era perfeita e julgo ainda estar para chegar o dia em que se veja um casal de noivos tão bem entrelaçado em tudo, não só nos trajes escolhidos como também nos olhares ou nos suspiros.

*

Antes de me adiantar mais façamos uma pequena pausa para contar algo que considero importantíssimo e que por um enorme erro omiti, quem sabe entusiasmado por esta bela história de amor. Antes de Williams ter chegado à cidade, Clarence era constantemente cortejada por um jovem oficial do Ministério da Justiça que se encontrava ali destacado, de seu nome John Harvey Booth.
Apesar do posto que ocupava Booth não era de todo uma pessoa bem formada, tinha alguma educação sim e chegara inclusive a estudar em Harvard de onde viria a ser expulso por em certa altura ter ameaçado um professor que o boxearia à inglesa. Em muita verdade apenas havia obtido aquele cargo graças à ajuda do seu irmão que era um influente político no estado da Califórnia.
Acontece que Clarence nunca vira o que quer que fosse em John Harvey para além de um menininho da cidade que nunca tivera de se esforçar por nada na vida e que agora acabava ali com um ganha-pão que não merecia. Várias e frustradas foram as tentativas de Booth para agradar a De Lil mas esta sempre respondeu às suas investidas com uma maciça muralha de desinteresse. Foi no meio desta desajeitada corte que Patrick Williams chegou aquele paraíso da Califórnia que todos conhecemos por Calico.

Como devem depreender, nada do que se seguira agradara a John, contudo ele sempre mantera a esperança que tal como fizera com outros Clarence afastasse Bill. A linha de raciocínio era lógica, só houve uma pequena possibilidade que não havia sido tida em conta: A de Clarence se apaixonar verdadeiramente tal como sucedeu.

*

Eis-nos assim no dia do casamento, um soalheiro 17 de Março, a marcha nupcial percorria e enchia toda a cidade e De Lil entrava, escoltada pelo telegrafista, seu amigo de longa data, deslumbrando todos com a beleza do seu vestido. Tudo parecia normal até que Clarence entre sorrisos depara-se com um altar vazio, Williams não estava onde tão apaixonadamente uma semana antes havia jurado estar, deteve-se, o sorriso rapidamente desapareceu, o ramo de rosas caiu pelo chão e com ele a música, fez-se um silêncio agoniante enquanto Lil olhava desesperada em todas as direcções tentando entender o que se passava.

Nesse preciso momento uma série de tiros ecoam pelo ar e Clarence sai a correr da igreja em pânico temendo por aquilo que sempre se havia recusado a acreditar: e se, Patrick Williams fosse realmente um escumalha do piorio?

Fora da igreja, no largo, estavam paradas várias carruagens daquilo que hoje seria conhecido por FBI. Então esses mesmos oficiais de justiça tinham a designação de Marshall. Aparentemente haviam seguido uma pista que localizava o assaltante do Banco Federal de São Francisco ali, na pequena Calico, e encontravam-se agora a cercar o Saloon de De Lil onde segundo as suas ‘fontes’ indicavam se escondia o patife. Haviam disparado tiros de aviso para que este se entregasse e esperavam agora uma reacção.
Subitamente uma das portas do Saloon abre-se e de dentro sai não mais não menos que Patrick Williams, vestindo o seu belo fraque, que se dirigia desarmado para os oficiais para se entregar quando de repente uma bala é disparada e atinge Bill no peito fazendo este cair quase como um espantalho. O atirador havia sido nada mais nada menos que o desgraçado John Harvey Booth que, cego pela ira e inveja que sentia por Williams, disparara inconsequentemente alegando a perigosidade daquele criminoso que nunca dera ares de tal.

Clarence observara toda este cena em choque, quando finalmente reagiu gritou a plenos pulmões enquanto corria na direcção de Williams que, ali estendido, se esvaía em sangue. Quando finalmente o consegue abraçar e deitar no seu colo não consegue evitar que as lágrimas lhe escorram da sua cara em direcção à dele. Havia perdido o seu Norte, Sul, havia perdido tudo num irreflectido e ignorante disparo. Simplesmente não conseguia parar de berrar de pânico, medo, desespero… Williams não conseguia falar mas foi capaz de alcançar a mão de De Lil, beija-la muito lenta e calmamente e de seguida depositar nela a rosa outrora branca do seu casaco e agora tingida de vermelho pelo sangue que turbulento saia do seu peito. Não foi capaz de fazer mais nada senão esboçar um sorriso e murmurar ‘Até sempre minha rosa selvagem’.

Certamente ficarão agradados em saber que John Harvey Booth foi acusado de homicídio em primeiro grau, crime que na altura e no estado em questão era punível com pena de morte mas percam já a alegria… novamente a sorte voltou a sorrir a quem menos merecia e Booth ficou apenas preso para a vida.

Já De Lil ficara com muito mais que uma rosa ensanguentada, tinha no seu ventre uma bela flor deixada por Williams, no entanto as memórias dele naquele lugar eram imensas e nunca as conseguiria ultrapassar, restava-lhe por isso a solução de regressar à sua amada São Francisco de onde partira fazia dez anos.

Julgo que por esta altura, como bom anfitrião que tento ser, vos deva falar um pouco sobre mim, chamo-me Sean Patrick Williams e nasci onde vocês muito certeiramente estão a pensar. Só não sou filho de quem vocês estariam a pressupor. Ele era meu avô.

Diários de Calico #11

Se havia um prazer da vida que Clarence apreciava era a dança, toda a gente o sabia mas acontecia que ninguém conseguia atraí-la por essa forma de arte, não que ela fosse superficial, muito pelo contrário. De Lil era uma exímia dançarina, de uma classe a nível que ninguém conseguira igualar até então. Acontece que no então chegara o nosso já velho conhecido Patrick Williams, que apesar de toda a sua aura carregada de maldade e patifaria era um categórico dançarino, faceta essa que De Lil até então desconhecia por completo até um pacato dia em que pelo seu Saloon ecoava uma típica valsa austríaca que na altura tanto destoava do típico Swing que era moda.
Não que isso desagradasse por completo a Bill, apesar de tudo o que já relatei dele admito em parte que talvez tenha exagerado… ele tinha em si alguma sofisticação, especialmente a nível de bom gosto musical, não era requintado ou elitista mas sim capaz de se contentar somente com o melhor, e uma suave valsa enchia as suas medidas. Mas qual não foi o seu espanto ao aperceber-se que além de um requintado gosto De Lil também partilhava do seu prazer pela dança, foi então que, pegando a sua mão quase sem pedir permissão; a lentidão do seu suave gesto havia requisitado toda e qualquer permissão possível e imaginária, à qual era timidamente não soube dizer que não.

Executou na perfeição a saudação típica à qual uma ainda atónita De Lil respondeu com a sua, para logo de seguida Patrick tomar delicadamente a sua cintura e estendo a sua mão esquerda, à qual Clarence não teve como recusar, deslizou suavemente pelas velhas tábuas do soalho mas fê-lo de uma maneira tão perfeita que parecia que o chão era o de um dos mais requintados salões de dança da iluminada Viena. Juntos valsejaram durante longos minutos, executando as voltas e contravoltas na perfeição deixara a madame completamente maravilhada mas não rendida, ainda, foi então que quase por magia a música saltara de uma adormecida valsa para um vivo e tempestuoso swing, daqueles dignos de deixar mesmo um experiente pianista à beira do colapso tal era a intensidade com as notas saltavam de tecla a tecla, com que as cordas vibravam no contrabaixo ou com a fúria com o ar corria os tubos do trompete.

Mas nem isso chegava para se equiparar à determinação com que Williams mudara o passo e o ritmo da dança, Clarence não era de todo a praticante mais versada do Swing mas nos seus braços, embalada pelo azul dos seus olhos e o preto dos seus cabelos nenhuma dança parecia impossível ou inalcançável, quer fosse a passos rápidos que permitiam aos seus cabelos meio encaracolados voar livremente ou rodopiando segundo um apoio tão firme que era o corpo de Patrick ela encontrava-se completamente rendida àquele estranho personagem a quem já tanto amava e ainda assim tão pouco conhecia…

Diários de Calico #10

Mas se o meu último relato vos faz navegar na mera ilusão de que Patrick e Clarence acabaram juntos então julgo ser meu o dever de vos retirar desse armadilhado pensamento. Em muito boa verdade Patrick Williams era um escumalha do pior que tanta sofisticação e bons modos escondiam de uma forma quase mágica, digno de um mestre do ilusionismo.

Havia uma razão para ele ali estar, ao contrário do que os contos sugiram os príncipes encantados não surgem do nada montados no seu reluzente cavalo branco por entre as brumas primaveris, nem tão pouco eles se destinam a senhoras como De Lil, os príncipes são para princesas e De Lil não era uma nem de perto nem de longe…
Infelizmente de gentleman Patrick Williams só tinha mesmo a fama, era um foragido da justiça que havia assaltado um banco em São Francisco e pelo caminho alvejado mortalmente um pequeno moço que vendia jornais e que por um macabro acaso foi apanhado no meio da troca de tiros entre ele e as forças da autoridade.

Tentando refugiar-se não só das incessantes buscas pela sua pessoa mas também para esquecer a jovem vida que tão abrupta e acidentalmente roubara Bill rumou a Calico, que tal como para muitos outros era senão um El Dorado no meio do deserto.
Apesar da sua falta de escrúpulos não se considerava um rude e cruel assassínio nem tão pouco considerava uma vida humana como um sacrifício aceitável para atingir os seus objectivos e aquele pequeno rapaz de olhos arregalados agora vazados de vida seria algo que lhe perduraria e perseguiria para sempre.


Como já devem ter entendido, Williams é o típico anti herói que apesar de ser um patife encanta com o seu malévolo e misterioso passado, e o facto de ter tão vilmente cessado com uma vida que ia na sua primavera não serve senão para aguçar a curiosidade neste sombrio personagem.

Tal como vós, caros leitores, também De Lil não conseguiu resistir a estes negros encantos e caiu no seu jugo de amor e sedução mas para aqueles que possam pensar que ela o fez sem o menor dos cuidados desengane-se, De Lil cedo percebeu que Williams não era aquilo que tão discretamente tentava aparentar mas percebeu igualmente que havia algo nele que a fascinava e talvez, quem sabe, se tenha deixado iludir sob a ingénua esperança de que o pudesse controlar na impossibilidade de o mudar.

Se mo perguntassem diria que Patrick e Clarence nunca confiaram realmente um no outro, nenhum deles esperava que o outro abdicasse do que quer que fosse em prol do outro, nenhum tinha irrisórias esperanças ou sonhos de uma vida partilhada a dois, viam-se como duas matreiras raposas que, dentro dos limites do humanamente aceitável, tinham uma relação que assentava num entendimento mútuo e respeito mas, até nestes casos o amor pode vir a surgir... Improvável, mas não impossível...

Diários de Calico #9

De todas as histórias e mitos do oeste que teimam em resistir à poeira do tempo havia um que sempre que fascinou as história de amor profundo e vil entre Madame De Lil e o Diabólico Bill, assim era chamada esta velha raposa do deserto, um arruaceiro puro e duro que durante muito tempo se diz ter calcorreado tudo quanto fosse metro quadrado de deserto até por fim ter sido um dos primeiros a fixar-se em Calico.
Conta-se que por essa altura o velho Finn ainda não tinha descoberto esta sua Irlanda do Deserto e que a cargo do Saloon estava uma senhora nos seus quarentas de nome Clarence De Lil, Madame De Lil para a maioria. E como para muitos, foi o amor de perdição de Bill, esse velho foragido não conseguiu resistir à beleza daquela senhora que tanto cantava e encantava mesmo sabendo-se pouco ou nada sobre o seu passado.
Mas falando verdade, De Lil também ficou perdida de amores por este visitante que chegara silenciosamente e não tentando dar nas vistas.

Ele não a perdera de vista um único minuto desde que chegara, havia uma imensa escolha de alojamento mas ele insistiu em ficar ali mesmo, no Saloon, perto do seu novo e aparentemente inabalável amor. Todos os dias descia à mesma hora, oito e meia da manhã, saía, dava os bons dias e rumava á cidade, voltava para almoçar ás doze horas e vinte minutos em ponto, finda a refeição tomava um copo de whiskey irlandês de puro malte e voltava a rumar á cidade para voltar definitivamente por volta das oito menos um quarto, altura essa em que comia algo e se sentava ao balcão do Saloon para não mais dali sair a não ser quando Clarence fechava.
Não falava com muita gente à parte da saudação matinal habitual a De Lil mas também nunca falhava um pagamento, sempre a pronto e sem falta. Toda esta rotina levantou a desconfiança entre os habitantes sobre qual seria o passado de Patrick Williams, assim era o nome verdadeiro desse Bill Diabólico. Uns apostavam em contrabandista, outros diziam que era um daqueles novos chefes de máfia vindos da Europa à conquista da América Selvagem, mas apesar desta divergência havia um consenso, tivesse feito o que tivesse feito, nada de bom poderia algum dia sair dali pelo que a maioria optava por manter a distância, pois... A maioria...

Já falei que De Lil havia ficado, à sua maneira recatada e discreta, perdida de amores por este novo personagem, intrigava-a o passado deste refinado mas misterioso senhor. Por um lado tinha feições rígidas e cansadas, típicas de quem passava uma vida de solo a solo sempre parar mas por outro tinha a educação, a pontualidade e a sofisticação de um puro ‘gentleman’. Se tudo isto não chegasse para fazer qualquer mulher suspirar seus amores aos céus, William era ainda um exímio tocador de Violino e quando disposto a tal, dava um ar da sua graça saltitando com o seu arco corda a corda o seu velho mas belo violino.
Com o tempo a cumplicidade latente entre Bill e De Lil era cada vez mais notória, ele havia perdido a sua feição rígida e esporadicamente esboçava um sorriso de pura felicidade. Havia até quem jurasse a pés juntos tê-los visto, numa limpa noite de Luar a passear pelas ruas vazias de Calico trocando poucas palavras mas imensos olhares.
Se a história for fiel á realidade então as suspeições infundadas de pouco ou nada importavam a partir do momento em que em pleno dia De Lil abandonava o seu saloon, de chapéu-de-sol ao ombro e acompanhada por William para um passeio por aquela espécie de rua que era nada mais que um amontoado de poeira assente. Não se entendia para onde passeavam nem o que tão belo haveria para ver naquele paraíso de pó e prata, quando a ouvi em criança não fazia mesmo sentido, se não havia baloiços nem bolas então para que iam eles andar?

Hoje, 50 anos depois percebo... nem sempre, num passeio, o importante é o destino ou a paisagem mas sim a singela companhia de uma bela rapariga, os olhares que se trocam ou, quem sabe, as palavras que ficam por dizer à custa de um olhar que por vezes recita uma autêntica ode ao amor. E enquanto para um jovem no seu apogeu conversar possa parecer patético, para duas velhas raposas como Bill e De Lil, para eles, recordar era mais que viver, era amar...

Diários de Calico #8

Gostava de quando ela me agarrava pela mão e arrastava a passos rápidos pelas ruas até invariavelmente me levar para um qualquer lugar que para mim não era mais que um terreno desértico com ervas rasteiras ou um amontoado de calhaus numa das muitas colinas que nos rodeavam. Isso agradava-me sobretudo quando percebia a razão de tão desenfreada correria, as razões geralmente prendiam-se em uma qualquer flor que miraculosamente florescia no meio de tanta poeira ou numa pedra que parecia ter sido intencionalmente esculpida para ter a forma da Lua.

Na maioria das vezes dava comigo a pensar se ela não pensaria à pressão em algo para justificar aquele aparentemente injustificável ímpeto; tudo isto para logo de seguida me maravilhar com o olhar fascinado que ela deitava a tudo e perceber que não havia outra intenção da parte dela senão partilhar comigo as notas que para ela eram as mais belas da sonata de Calico.

Pessoas haverão que por esta altura já estarão a rebuscar os seus dicionários para sinónimos pomposos para amor e eternidade e a arranjar maneira de conjugar estes dois termos mas a verdade é que será infrutífero… Ela era tão imprevisível quanto os veios de prata que rodeavam Calico e teimam em se esconder cada vez melhor dos mineiros cada vez mais enfeitiçados pela sua cor de luar; dizer que era amor isso que ela sentia ao me arrastar por esse horizonte seria tolo.

Conhecia-a bem e sabia perfeitamente que nunca alguém com uma alma tão livre se renderia assim, sem verso nem prosa, se assim o fosse não despertaria em mim esse fascínio desde o meu primeiro dia, desde os tempos em que era um pequeno rapaz que acabado de chegar a Calico procurava desesperadamente por alguém. Já me tinha sido permitido vislumbrar o suficiente para compreender que apesar de não conseguir viver sem ela isso não significaria necessariamente que a amava.

Gostava de estar sozinho com ela, fosse a olhar para as ditas flores ou simplesmente deitado nos poucos prados verdes, que existiam à beira do pequeno riacho, enquanto olhávamos para o céu como desculpa para não olhar para o vazio ou quando ela começava a despentear-me mesmo sabendo o quanto isso me irritava, mas ela adorava-o e como poderia eu negar tal prazer a alguém tão belo que com um singelo sorriso me reduzia o mundo a dois olhos, um nariz arrebitado, uma boca tímida de inicio mas irreverente com o passar do tempo ou com os mais belos e selvagens caracóis de cor castanha que alguma vez vira.

Não estava apaixonado, simplesmente não conseguia viver sem ela, o que era pior, pois o amor um dia, tal como tudo acaba e não resta senão a memória, cicatriz mais ou menos profunda. Já o que eu sentia era pior, não ia doer dali a um par de semanas, meses ou anos. Doía já ali naquele preciso momento unicamente com o medo de no dia seguinte ela não ter uma nova razão para uma vez mais me arrastar para apreciar um pequeno detalhe que nos deixasse maravilhados.
Mas ela encontrava sempre algo, havia sempre algo que ela queria que eu visse, cheirasse ou sentisse, entendem agora o quão angustiante era o medo? O receio de um momento para o outro perder tudo aquilo que ela com a sua simples existência me conferia era sem dúvida alguma pior do que o mais desgostoso dos amores, nada há como um grande amor para esquecer outro grande amor.

No caso dela não havia outro grande coração que me pudesse fazer esquecer o seu...

Diários de Calico #7

Na minha infância em Calico vi muitos nascer do Sol, gloriosos e imponentes sobre as selvagens montanhas que eram as fieis guarda-costas de Calico contra os temíveis ventos e areias do deserto, que se reflectiam sobre tudo desde as pequenas e insignificantes areias, os vidros da casas; que de uma forma desordenada estavam plantadas ao longo do caminho. Era um aspecto do quotidiano, nada de relevante para uma qualquer pessoa numa qualquer cidade mas em Calico, sabia tão diferente, talvez o saiba agora pela saudade talvez já o sentisse na altura. A verdade é que em Calico tudo parecia ser diferente, era como se soubesse à partida que nada daquilo duraria para sempre; seria um sonho de uma quente noite de verão que apesar de agradável e apetecível teria de acabar para um novo dia nascer.

Foi essa uma das primeiras impressões que causou em mim enquanto descia os degraus da cansada locomotiva que durante horas acelerara furiosamente entre as áridas e inóspitas terras do deserto de Mojave. Lembro-me que chegara mesmo de manhãzinha a tempo de presenciar o nascer do Sol que primeiro timidamente e depois com convicção escalava essas montanhas que eram rainhas num horizonte plano e com uma vastidão como nunca vira. Gostei, aliás gostar é pouco… tocou-me com uma tamanha intensidade, era tão bonito que doía. Provocava-o tão somente a mera possibilidade de um dia ser privado da maravilha que me acabara de ser permitido vislumbrar.

E por mais anos que viva, por mais sítios que visite uma coisa é certa: poucas coisas nesta vida se poderão comparar à unicidade que era aquele rápido relance matinal do sol a acordar levemente as montanhas de Calico com o seu leve beijo de luz.

Diários de Calico #6

Longos e resplandecentes eram os carris, negras como o breu eram as solipas, longínquas e árias eram por vezes as terras às quais chegavam, cruzando um território que de selvagem, nos dias que corriam tinha mais a fama que o proveito.
Cruzava rios, saltava penhascos, voava sobre ravinas de perder a vista para longo de seguida mergulhar na rocha escura e sombria.
Inúmeros foram os metros de terra que calcorreou, entre destinos e entre vidas, entre negócios e amores, entre guerra e paz, dia e noite, entre tudo e entre nada.

Para muitos uma fria máquina de ferros cuja negra nuvem cortava e destruía paisagens sem fim, para outros um imponente ‘puro sangue’ de madeira e aço que a toda a velocidade cruzava o deserto entre os uivos do vento e os gritos de guerra desses selváticos peles vermelhas que hoje em dia são não mais que objecto de ficção nos filmes e que então eram um medo constante. Apesar das divergências não havia ninguém capaz de se lembrar e afirmar não se tratar de uma das mais brilhantes e engenhosas invenções do génio humano e um dos grandes fundadores e impulsionadores de Calico.

Como em qualquer outra cidade que tenha nascido como Calico tudo começou com uma singela linha negra a contrastar com o amarelo do deserto. Primeiro um pequeno apeadeiro de carga que servia a mina e os seus mineiros que nos primeiros tempos repetiam aquela diária jornada férrea ao clarear da aurora e ao último raiar do crepúsculo nas carruagens já marcadas pela idade e pelos assobios alegres e carregados de uma melodia que só quem se aventurava terra a dentro compreendiam e partilhavam.

Eventualmente tomou-se a decisão crucial, era preciso que algo mais se desenvolvesse ao redor do pequeno apeadeiro, primeiro uma estação de correios, seguido de um telegrafo, um pequeno café, uma pousada e aos poucos Calico começava a surgir num mapa que antes só contava com terra. O velho apeadeiro de madeira dava lugar a uma nova estação com pedra polida e vidros não baços que espelhavam a alegria no rosto de todos quantos ali chegavam á procura de uma nova etapa de vida.

Sempre foram um indicador constante do estado de Calico os seus inicialmente reluzentes carris que com o passar dos anos e com o consequente malfadado abandono de Calico viriam a escurecer e a não conseguir salvar as suas outrora novas solipas da podridão.

Mas nem tudo foi infeliz nesta nobre linha férrea, muitos foram os momentos de alegria que deu á cidade, como a primeira vez que nela viajei com os meus pais rumo a um el dorado que apesar de toda a adversidade achávamos existir em Calico, e durante vinte anos esse paraíso de facto existiu, e todos os devemos à fiel locomotiva que apesar da idade nunca por um dia falhou um destino, essa robusta, infalível. e incrível peça de engenharia.

Diários de Calico #5

O Swing saltitava entre as tábuas do velho soalho que rangia com o frenético dançar, o qual serpenteava por entre o fumo que enevoava o ar e o álcool que iludia a alma. Assim se pode descrever numa única frase o ambiente do Irelander. Chamava-se assim por o seu dono, o velho Finn O'Mcdonald (Finn O'Mac para os amigos), ser originário de Kildare. Para ele aquele bar era o mais parecido com os verdes prados do condado de Cork ou a espuma preta de uma boa caneca de Guinness que ele podia encontrar no meio daquele amontoado de pedra, terra, sol e madeira a que um dia se decidiu chamar Calico.

A música era uma constante, não poderia existir um Saloon como aquele sem ela. O velho Finn era uma amante de música e sempre que se lhe dava a mínima hipótese lá estava ele a trocar os copos e as garrafas de whiskey e gin pelas velhas teclas de marfim do seu piano ou as gastas cordas do seu violino ou algo menos rebuscado como uma simples harmónica. Fosse em que instrumento fosse ele provava ser exímio em qualquer um deles mas mais que isso, tinha a capacidade de contagiar todo um bar que mal ouvia os primeiros acordes ganhava uma nova vida. Era uma rambóia interminável essa que todas as noites enchia aquelas simples paredes de animação e alegria fazendo com que os contratempos do dia a dias fossem algo minúsculo e insignificante

Mas nem só de música vivia o ambiente boémio do Irelander, o seu encanto também ficava em muito a dever-se a simples características como o seu ar carregado pelo fumo do cachimbo ou as conversas de fundo que enchiam aquele espaço e faziam parte da vida de toda uma cidade que mal o relógio batia nove badaladas ali rumava; quem sabe para também ela achar um pouco do seu sentido entre o flamejante swing ou o melancólico Jazz.

Mas o que seria de um bar se não tivesse um bom par de rixas e escaramuças na sua história para exibir como se fossem condecorações de guerra e no caso do bar do O’Mac não era preciso esperar muito para ver uma. Era tão-somente uma questão de numa das muitas mesas algum trapaceiro tentar passar a perna às velhas raposas de Calico e ser apanhado. Num piscar de olhos todo o bar estava envolvo num enorme reboliço que à falta de melhor razão servia para mostrar ao forasteiro a raça e a alma daqueles com quem lidava. Cadeiras berravam, os murros silvavam entre os palavrões e o calão. Todo um pacato ambiente transformado no mais caótico dos campos de batalha, toda uma população aparentemente civilizada transformava-se na mais selvática tribo bárbara.
Chamem-me louco ou inconsciente mas sempre achei que estes momentos de violência gratuita eram uma necessidade daquelas vidas que naquele momento ali bravamente se debatiam umas contra as outras. Para mim, um bom serão no Irelander devia incluir um pouco de tudo, um bom copo de whiskey, um bom cigarro, uma boa música de fundo e uma sessão de pancadaria das antigas.

Se isto tudo já não fosse mais que suficiente para fascinar o jovem que existia em mim na altura havia algo ainda mais surreal: O McDonald apesar dos seus cinquenta e muitos anos era sempre o primeiro a amotinar tudo e todos para a pancada e mal esta estava lançada ia-se sentar no seu piano a tocar uma música condigna com a presente escaramuça. Era um gosto adquirido - dizia-me ele – o caos acompanhado pela arte. Pensando bem, num local que sorvia tanto da sua existência nas melodias da vida, algo tão característico do Irelander, como eram as suas muitas noites de confusão boémia, não poderia acontecer sem ser ao ritmo desta. Não poderia ser de outra forma.

Estranhamente, com o passar dos anos, cheguei à conclusão que tudo aquilo que se desenvolvia no Irelander era essencial às vidas dos que por lá perdiam parte da sua existência. Nunca percebi bem porquê mas sentia que tinha razão através do vigor dos socos que eram trocados, do timbre dos gritos de guerra lançados ou no brilho estampado no olhar daqueles que, tal com o Finn O’Mac, apreciavam tudo quanto o Irelander podia oferecer

E só quando por fim, já envolto pelo breu da noite, o abraço do silêncio e a mordaça da solidão; a calma voltava ao Irelander de o velho McDonald fechava as portadas, trancava as portas e seguia rua fora assobiando à lua, sua fiel companheira, a mesma canção de sempre é que Calico ia dormir.

Diários de Calico #4

Das muitas vidas que cruzavam as poeirentas ruas de Calico nenhuma me fascinava mais que a do carteiro. Naquela altura e na zona do país em questão, o serviço postal era algo feito numa base semanal e era comum que pequenas cidades como esta partilhassem os serviços do mesmo carteiro o qual num galopar incessante e incansável trazia e levava as novas de terra a terra.

No caso de Calico, o carteiro era um homem a um par de anos da meia-idade, de feições não tão rígidas quanto as lendas do velho oeste insistem em caracterizar esses cavaleiros solitários. Tinha a face marcada pelas árduas jornadas sob um sol abrasador ao longo desse deserto que tantas vezes parecia interminável e implacável. Tinha um porte imponente: ombros largos, alto, voz grave, era alguém decididamente perfeito para as exigências da tarefa. De todas estas características nenhuma era tão bem conhecida como o som da sua harmónica a ecoar ainda a vários quilómetros de distância, cruzando os céus laranja e anunciando a sua chegada.

Em toda a minha vida convivi com vários carteiros mas nenhum, no entanto, me deixou tantas e tão marcantes recordações como este senhor que teimava em chegar ao cair da noite ao invés do primeiro raiar da alvorada. Ele que trocava o alegre cantar do viajante pelo triste sopro da sua harmónica que apesar de tanta tristeza carregar nenhuma à correspondência dizia respeito, distribuindo alegria através desses tesouros escritos em tinta sobre papel e tão ternamente acondicionados nesses belos e clássicos envelopes que ele fazia questão de não ficarem sem destinatário, promessa essa que tanto sofrimento na cara lhe espelhou.

Sempre o vi como alguém que tinha o deserto, a Lua e o seu fiel cavalo por únicos companheiros, não que achasse que isso o fazia infeliz. Das inúmeras vezes que o vi, nem por um único momento a sua melodia me soou como um choro... Soava a tristeza sim mas uma tristeza bela, algo digno de alguém que amava a sua vida e o seu ofício de tal modo que a simples percepção da efemeridade dessas jornadas audaciosas pelo deserto e de as suas aventuras não mais que uma vida durarem o entristeciam e faziam apertar a saudade de um deserto que ainda não havia perdido, mas que um dia inevitavelmente se iria, ele que foi a sua casa da qual o céu estrelado que tantas noites o seu tecto fora.

Nunca consegui entender o que certo dia o levou a deixar amizades, terras e amores, abdicar de sonhos e aspirações para se tornar num meio de transporte de sentimentos, levando a felicidade alheia de terra em terra a troco de sorrisos e do seu próprio esforço.

Muitos livros se escreveram sobre bandidos, xerifes, cowboys, aldrabões e outros que tais, mas nunca uma singela página foi dedicada a esta gente de fibra, que entre noites gélidas ao relento a manhãs enevoadas e inóspitas nunca deixaram uma mensagem por entregar, fosse ela uma cobrança de uma qualquer mísera dívida ou uma declaração de amor que para alguém seria o mundo.

Uma verdadeira lenda, seja onde for, havendo luar e um céu estrelado sinto aquela velha e tão familiar melodia a ecoar de novo ao meu ouvido e isso, de certa forma faz-me sentir tristemente feliz...

Diários de Calico #3

Se há memória que não se perde é a do primeiro dia de escola. No meu caso isso seria equivalente a dizer que tenho várias memórias dessas mas, em verdade, poucas se comparam à que tenho de Calico.

A escola desta pacata cidade no meio do deserto plantada não era um edifício imponente, com ar moderno ou com um enorme letreiro a indicar a sua função. Era um edifício simples, de um só andar totalmente revestido de madeira, e apesar de ter já algumas marcas do tempo e das traquinices dos mais novos havia algo de intrigante nele que impedia de desviar a vista dele.
Apesar deste aspecto exterior algo degradado e pouco convidativo o seu interior era acolhedor, não por ser novo ou estar arranjado, muito pelo contrário.

Desde o soalho de madeira que rangia sem timidez nos mais variados tons, com os quais a criançada se divertia a compor melodias como se este de um enorme piano se tratasse, às portadas das janelas que batiam de acordo com o silvar do vento pelas pequenas falhas entre as tábuas que erguiam aquele lugar que apesar de tudo tão mágico era.

E numa dessas salas lá estava ela, sentada na sua secretária iluminada apenas pelo seu candeeiro e com os óculos pendurados ao pescoço, à espera dos seus petizes para, por uma vez mais, os fascinar com histórias dos mais famigerados fora da lei, inimigos da ordem e heróis populares, com um entusiasmo que só ela era capaz de transmitir e que nos fazia imaginar como seria cavalgar sem rumo por todo esse oeste selvagem que tantas lendas criou, território dos bravos, paraíso dos destemidos, terra da liberdade, de todos e de ninguém.

Tinha um talento natural soberbo para naquelas cerca de cinco horas nos abstrair de quaisquer adversidades do dia a dia, criando todo um imaginário de fantasia e ficção nas nossas cabeças a partir de meras letras impressas nas folhas, já amarelas da idade, daquele velho livro de capa dura e escura, digno de figurar numa qualquer biblioteca renascentista.

A sua voz convencia e o seu tom encantava, despertava o fascínio de todos quantos tinham o prazer de conviver com ela. Desde o carteiro, que todos os dias inventava uma nova razão para bater à sua porta, ao merceeiro que, no seu jeito meio grosseiro, diariamente lhe ia levar uma flor em jeito de corte numa tentativa vã de chamar a sua atenção e tentar disfarçar a sua notória falta de jeito para estas vidas de amores.
Ninguém lhe conseguia passar despercebido desde o dia em que chegara aqui. Foi acolhida como sendo a filha exemplar e há muito desejada de Calico.

Todas as histórias precisam de protagonistas e todos os romances suspiram por... algo mais...

Diários de Calico #2

Viver em Calico não era propriamente fácil, era um território ingrato que não dava nada sem contrapartidas; não rendia a sua riqueza à ambição humana sem antes reclamar o seu preço no sofrimento que estampava nas caras de outros que tal como o meu pai ali chegaram atraídos pelo seu traiçoeiro canto de felicidade e prosperidade.
Era uma terra inóspita, trabalhada solo a solo, sem outra cor senão o castanho do pó e o laranja nos confins do seu horizonte, onde a terra abraça o céu.

Apesar de tudo quando exigia a vida nesta pequena cidade estava longe de ser um inferno, era um exemplo vivo do sonho americano, dia após dia, semana após semana inúmeros eram os que chegavam atrás da prometida vida nova que Calico aparentava oferecer, longe de toda a miséria a que alguns pareciam condenados.

Lembro-me especialmente daqueles finais de tarde depois do jantar, no alpendre de nossa casa. A minha mãe ia-se sentar na cadeira de baloiço levando com ela as suas agulhas e começava a tricotar a mais variadas peças de vestuário, desde uma camisola de lã de cores berrantes e capaz de embaraçar qualquer rapaz de 6 anos até um qualquer par de meias... Enquanto isso já o meu pai se havia instalado confortavelmente no seu habitual lugar e acendido o seu fiel cachimbo de madeira, já negra e marcada pelo passar dos anos, ficando então a fumegar em silêncio enquanto olhava o horizonte com encanto, durante anos não fui capaz de perceber ao certo que fascínio poderia ele ver numa planície indomável e sem fim...

Para mim aquela era a melhor altura do dia, na maioria das vezes ficava sentado nas escadas, imóvel e calado, a ouvir as pessoas que passavam dum lado para o outro, na maioria das vezes sujas e cansadas, mas sempre com um sorriso na cara.
Era uma terra mágica que encantava todos quantos a ela chegavam com intenção de não mais a deixar fosse porque razão fosse.

Recordo-me do dia em que perguntei ao meu pai porque razão tantos largavam tudo quanto tinham e para aqui rumavam sem nada mais que uma incerta promessa de prosperidade...
Não me soube dar uma resposta concreta, apenas foi capaz de esboçar um sorriso...


Eles simplesmente acreditavam em ti, Calico.

Diários de Calico #1

Guardo poucas recordações da minha infância, talvez por terem sido tempos difíceis para se conseguir ser criança ou por não sentir que tais tempos tenham realmente sido como seria de esperar, entre mudanças de terra em terra com os meus pais que duravam ora semanas ora meses. Uma das que nunca consegui esquecer foi aquela do primeiro dia em que cheguei a Calico: o meu pai dizia que se tudo corresse bem seria ali que encontraríamos a felicidade e a estabilidade que tanto ansiávamos – honestamente sempre o achei bastante ingénuo para um adulto que tinha passado por tantas adversidades ao longo da vida; não posso no entanto deixar de admirar a maneira como nos conseguia sempre alegrar lá em casa. Achei impossível que ao fim de tanto salto de um local para o outro pudéssemos realmente ser felizes num sítio específico; já estávamos habituados a não nos agarrar demasiado aos lugares por onde passávamos e às suas gentes pois em grande parte deles a nossa presença seria efémera, no entanto, ali foi diferente.

Se à chegada todo aquele ruído ensurdecedor me soava a um negro dia de trovoada e o fumo que emanava daquelas chaminés nada mais me lembrava senão a escura noite, bastou vê-la no jardim da casa ao lado a brincar com a sua boneca de trapos enquanto entoava uma canção que de modo algum parecia ser afectada por todo aquele ruído que tanto me incomodava; eu era tímido (sempre o fui, na verdade tímido não era o termo correcto, era...reservado) e apenas por isso me contive de logo ir perguntar-lhe como o conseguia fazer; como conseguia ter um sorriso na cara numa cidade que inspirava sofregamente trabalho e transpirava pó. A minha mãe percebeu logo tudo, característica fantástica essa inerente a qualquer mãe, baixou-se, sorriu-me e disse-me tão somente que ela era muito bonita e decerto seria simpática.

Com os anos aprendi que esses conceitos nada mais são que uma forma abstracta de tentar explicar porque se gosta mas a verdade é esta: nunca ao longo da vida somos capazes de ver com tanta clareza porque se gosta de alguém como quando somos pequenos, gostamos porque gostamos, e eu ainda mal a tinha visto e já gostava dela.

Não sabia o nome, nem a idade, nem tão pouco se tinha a voz suave e fina ou grave e grossa, se era carinhosa e amável ou se pelo contrário era uma peste insuportável... naquele momento tudo o que queria era unicamente estar sentado ao lado dela a vê-la segurar firme mas suavemente na sua linda boneca.

Os dias passaram e nem por uma vez ganhei coragem de lhe dirigir um mísero olá; dava comigo a ir brincar para o jardim sem ter vontade, eu queria lá saber de brincar... tudo o que queria era simplesmente olhar para ela, sentir o aroma que o vento trazia dela para mim e que, mesmo não o sendo, sabia melhor do que muitos dos beijos que dei nesta vida, ouvir as suas canções e adormecer à sombra da nossa macieira na esperança de sonhar com ela.

Os dias viraram semanas, as semanas viraram meses e a verdade é que tudo indicava que ali estava realmente aquilo que ao longo dos anos procurámos; pelo meio ultrapassei a infundada vergonha infantil que sempre tive e perguntei-lhe se queria ser minha amiga (engraçada a forma como se travam amizades quando somos pequenos, tão mais fácil e simples do que na vida adulta, quando se sente que a confiança essa é sempre garantida e que nunca precisaremos de duvidar ou desconfiar de nada).

Os meses rapidamente se converteram em anos, foi ao longo desse tempo e com ela que finalmente aprendi a triste mas doce melodia de Calico: das tubas que eram as chaminés; às cornetas que eram as picaretas, o rufar do tambor marcado pela dinamite passando pela voz e alma dos incansáveis mineiros e outros que tais.
Era para mim a mais rude mas agradável das melodias e a ela devo tudo isso, a ela devo o amor que tive e ainda hoje tenho por esta cidade. Há coisas que nunca esqueci, a sua música, nome, cheiro, cor, voz e alegria ficaram, devo-lho muito mas se houve algo que nunca lhe desculpei foi um dia ter levado a minha inocência e o meu coração e com eles ter desaparecido sem avisar e para não mais voltar...



...Até um dia... Passados muitos anos ...

Calico

Grandes e imponentes máquinas a vapor delimitavam as linhas dum horizonte que não era mais selvagem, as suas chaminés as tuas montanhas, o seu fumo a tua névoa e o teu sol…as lanternas que alumiavam as tuas ruas noite fora. Foste o culminar da terrível máquina industrial mas mesmo o sendo soubeste dota-la de um coração, mais do que isso: espelhaste a alegria em todos quantos enterravam em ti as suas vidas, solo a solo, dia a dia. Foste o El Dorado dos tolos e o paraíso de poucos mas a todos fizeste promessas surreais de glória e riqueza.

Os sons das tuas engrenagens eram os cânticos que ecoavam nas cabeças das novas gerações que ansiavam um dia poder, tal como seus pais, aventurar-se nas profundezas dessa terra que já não era só tua mas vossa. Bravos os mineiros que te enfrentavam e nos teus confins buscavam a riqueza, valentes os moços das vagonetas que desciam rapidamente por esses escuros túneis tendo por amigo a boa e velha candeia que fazia das trevas nada mais que um pequeno relance de nostalgia. Melodiosos os ferreiros que trabalhavam o aço que um dia seria mais ou uma singela picareta ou o mais trabalhado dos revólveres, tamanho fascínio exercias nos viajantes que uma vez chegados não mais conseguiam partir.

E essas tuas noites cheias de luz e vida que não se restringiam aos bares e animavam as toda a cidade, o som da guitarra a ecoar por essas já poeirentas ruas acompanhado do troar do saxofone e o ritmo frenético do piano tocado pelo taberneiro (com a sua musa e amor ao lado) faziam esquecer o sofrimento da vida diurna e mudavam drasticamente as caras pálidas e poeirentas dos mineiros que, nem que apenas por um relance, esqueciam todos os perigos que os esperavam na manhã seguinte.
O teu luar que teve sempre por companheira a harmónica do velho xerife, que desde a sua cadeira no seu alpendre contemplava toda uma cidade que amava como ninguém mais poderia amar: desde o simples fumo que das chaminés subia rumo aos céus, num zigue zague constante até ao uivo dos coiotes, sem o qual com toda a certeza a sua música não seria a mesma.

Mas ninguém é eterno e também a harmónica morreu levando com ela os coiotes e quem sabe, também um pouco de ti que perdias o teu maior amante e amigo. E quando a velha companhia de mineração dá por encerrada a mina e cessa o assobio pelo vapor das velhas máquinas e os jovens não mais sentem o seu chamamento é o fim. Mineiros, ferreiros, carpinteiros, homens de arte e engenho todos são obrigados à sua última viagem na velha Maria Fumo (como tão docemente haviam apelidado a fiável locomotiva) que os levará a novos destinos com a incerteza de um dia aí voltar.

Foram-se os juventudes, ficaste tu e outros que tal como o bom xerife a ti haviam feito juras de amor. Ficou o bar, a estação, a formosa escola e o posto dos correios.
Os dias já não eram pautados por qualquer som, apenas o vento a bater nas inertes portadas de madeira que oscilavam para trás e para a frente; e as noites passava-as o taberneiro no seu bar, sentado ao piano rodeado por uma plateia incapaz, tal como ele, de deixar a vida naquela sua pequena mas acolhedora cidade.

O professor entregue ao seu gin tónico e ao seu cachimbo marcado pelos anos perguntava-se quanto tempo mais aquela espera pelo fim duraria para ser logo a seguir animado pelo coveiro, que apesar do malfadado ofício adorava todo aquele isolamento, não teve de esperar muito… Num espaço de meses ficaste sem o teu pai e mentor, que educara as tuas crianças e delas fizera homens e mulheres como nunca outra cidade tivera. O velho telegrafista não resistiu a uma pneumonia e soltaria a sua última palavra de apreço a ti na primavera seguinte. Restava agora o coveiro, o funcionário da estação e o taberneiro, perdão; apenas os dois primeiros pois oeste último farto da solidão e de intermináveis noites sentado ao piano, já com as teclas de marfim gastas pelo tempo, quis reencontrar a sua há muito perdida esposa e amor de uma vida, vítima da tuberculose.

Partia assim o último Comboio, com a certeza de nunca mais voltar.
Ficaram para trás vidas, misteriosos contos e lendas dos grandes aventureiros que um dia em ti mas acima de tudo por ti existiram. Só a Lua e as montanhas que te rodeiam se irão lembrar do velho xerife e da sua harmónica, do taberneiro enamorado pela música ou do professor que definhou no leito de morte pelo pupilo que tantos anos esperara em vão. Só eles sabem o quanto sofreram as tuas gentes e quanto te amaram. Só eles sabem quem tu um dia foste...