sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Diários de Calico #15

A oficina de Vachel-Carling, essa modesta fábrica de sonhos que ele ali construíra naquela pequena e pacata Calico, era um antigo barracão que se situava nas traseiras de sua casa.
Era um espaço amplo mas altamente afetado pela idade e pelos humores algo incertos do tempo. Tinha uma população constante de aranhas e outros que tais insetos a quem as podres falhas do soalho e das paredes ofereciam uma apelativa moradia. Os vidros eram fuscos e estavam carregados de pó, que neles se havia acumulado ao longo de largos anos e quando penetrados pela luz do sol enchiam a sala com um brilho fusco, quente mas de aspeto sombrio.

Carling, Wright e Watts acreditavam que era necessário dotar aquele espaço de todos os confortos que achassem úteis aos seus génios; assim haviam decidido que a um canto daquele enorme espaço criariam uma zona de convívio onde, no seu dia-a-dia, se pudessem sentar e falar de outras coisas que não o seu famigerado motor. Deviam reservar igualmente um espaço para uma enorme secretária onde pudessem estender longos papéis cheios de esquemas e planos sem que estes se misturassem com ferramentas ou puro lixo.

Ao centro deveria estar localizada a enorme banca na qual seria montado esse Golias da maquinaria motorizada. Começaram assim as obras de remodelação daquele espaço que em breve seria a mais perfeita designação do pote de ouro no fundo do Arco-íris. Não foram poucos os momentos de rebaldaria que por ali se protagonizaram, especialmente quando Fred decidia parar a meio da tarde para uma sesta e era brutalmente acordado por Douglas com o pretexto de que o tempo era escasso e todos o minuto valioso; logo se gerava a confusão com Watts a ameaçar Wright que o boxearia à inglesa, ameaça essa a que este respondia com a oferta de uma demonstração de violência gratuita irlandesa.
Eram momentos de tensão altamente cómicos e prontamente sanados por George que a fim de acabar com o passatempo diário daqueles dois palermas se viu forçado a instituir a hora da sesta a fim de garantir que aqueles dois desgraçados não se matariam um ao outro.

Toda a cidade tomara um particular interesse nestas obras pelo que muitos foram os que se disponibilizaram a ajudar: desde o Merceeiro Jim Lane, que se dispôs a achar os melhores materiais aos melhores preços, até à velha Lucy Bell que pontualmente às cinco da tarde lhes ia levar um lanche de deixar água na boca a fim de lhes restituir as forças para o resto da jornada diária.
Por volta dos finais de Setembro de 1882 a oficina de Vachel-Carling estava concluída. Haviam decidido chamar-lhe Oficina de Hefesto, o ferreiro dos Deus gregos, por considerarem que aquilo que ali se propunham a construir rivalizaria com os Trovões de Zeus, o Tridente de Poseidon ou o capacete de Hades a nível de maravilha.

Quem entrasse na oficina encontrava logo à sua direita o tão falado espaço de convívio, composto por uma pequena carpete redonda, no centro da qual se encontrava uma pequena mesa amontada de revistas e jornais. À volta desta havia três confortáveis poltronas cada qual com a sua mesinha de apoio. Se ideias geniais ainda restassem àquele trio então com toda a certeza que iriam ter lugar naquele recanto da oficina. Do lado esquerdo junto da entrada encontrava-se a tão badalada secretária que dentro em pouco estaria a abarrotar de papelada ciêntifica e técnica. No meio, debaixo de um forte candeeiro, estava uma enorme banda que media pouco mais de seis metros quadrados e onde, a seu tempo o engenho seria convertido em arte e tecnologia.

Ao fundo, na parede, existia um enorme quadro negro a toda a largura desta destinado aos mais frenéticos e feios rabiscos de Carling.

Toda a sala era povoada por enormes janelas, as quais eram adornadas por negras e grossas cortinadas destinadas a, quando necessário, obstruir a luz ofuscante do sol; já o chão era do mais negro soalho que se havia encontrado a fim de disfarçar a sujidade que com o tempo certamente se iria acumular. Por capricho, Carling havia decidido colocar nas traves do teto pequenas esculturas em madeira representantes das mais variadas religiões, desde o cristianismo ao islamismo, passando pelo budismo e até pelo xintoísmo. 
A início esta escolha havia causado apreensão aos seus dois companheiros, que propósito poderia servir uma merda superstição quando o que os três se propunham a fazer não saia nem um pouco do campo da lógica e da razão? Nas sábias palavras de Carling: “Se até Colombo, ao fazer-se ao mar rumo ao desconhecido e mesmo convicto da sua teoria da esfericidade da terra, fez questão de adornar as suas velas com a cruz de Cristo; porque não haveriamos nós então de recorrer a tudo quanto possamos a fim de garantir o bom sucesso desta nossa empreitada?”


Estava assim dado o primeiro passo rumo a esta fantástica e sofrível demanda, uma como Calico nunca antes vira nem nunca mais iria voltar a ver, o que ali sairia? Apenas o tempo o sabia, e se pudesse falar….

sábado, 4 de agosto de 2012

Diários de Calico #14


Se acharem que o nivel de loucura de tal projecto era demasiado para um homem só, mesmo sendo esse homem Vachel-Carling, então estão certíssimo mas, para infelicidade de alguns e felicidade da maioria, a sua loucura não se encontrava sozinha neste empreendimento. 
Tinha a ajuda-lo em interesse e em engenho o mecânico de serviço da Wells Fargo e o telegrafista cujo posto se encontrava sediado no mesmo terminal ferroviário; o primeiro chamava-se Douglas Wright e o segundo Fred Watts.


Douglas era um aficionado por tudo quanto rolasse, para ele a vida só fazia sentido se estivesse rodeado por toda essa parafernália de objectos que com um pouco de vapor ganham vida e soltam um sonoro rugido. Dizia muitas vezes que sem as maravilhas da mecânica e da dinâmica este mundo ainda continuaria a andar a pé e a fazer tudo manualmente; via a Revolução Industrial do mesmo modo que os humanistas viam o Renascimento ou os liberais a Revolução Francesa. Era um rapaz no final dos seus vintes que tinha um cabelo naturalmente eriçado, sobrancelhas pronunciadas e uma barba de três dias de um preto de meter inveja ao escuro da noite. Juntando a tudo isto a sua predilecção por camisolas de gola levantada, gravatões e coletes de pontas afiadas estávamos perante um personagem com um ar loucamente de génio mas não por isso menos simpático e sorridente. Nunca deixava umas boas tardes sem resposta e fazia questão de cumprimentar todos quantos lhe dirigiam a palavra.
Também ele chegara a Calico em busca de um novo rumo para a sua vida e de ofertas de trabalho mais atractivas que aquelas que haviam na grande cidade da qual era originário: São Francisco.


A empatia que estabeleceu com Vachel-Carling foi quase imediata; era como se fossem pai e filho separados à nascença tal era a cumplicidade que pouco tempo depois de se conhecerem já partilhavam. Mas em boa verdade, a gota de água para o sossego ou se preferirem desassossego de Calico foi o dia em que George com ele resolveu partilhar o seu ambicioso projecto no frio e árido mês de Dezembro de1882, desse dia em diante nunca mais houve paz naquele pacato povoado florescente rodeado de vento e pó.

Deste audaz e empreendedor grupo, o mais contido, mas não por isso menos esforçado, era sem dúvida alguma Fred Watts. Era um bon vivant sulista dos seus confortáveis trinta e cinco anos que passava os dias com saudades da sua Virgínia onde, segundo ele, se tinham a melhor qualidade de vida, os dias eram sossegados e o ar era puro, mercê da sua ainda fraca industrialização. Contudo e de acordo com o que dizia, este tipo de vida sossegada tinha como única consequência negativa a escassez de postos de trabalho relacionados com o avanço tecnológico do país; não lhe restando senão outra solução que partir em busca de uma cidade em crescimento e que necessitasse dos hábeis serviços de um telegrafista. Foi Calico o paraíso para si também, como o fora para outras centenas antes, quando a este fim de mundo, que para nós era o céu, chegou no inicio de 1882 ainda o posto de telegrafo tinha um gabinete improvisado no Saloon do velho Joe em plena avenida (se é que assim se lhe podia chamar) principal de Calico. 
Como bom sulista que era primava sempre por se vestir bem, exemplarmente e nunca fugindo aos tons esverdeados escuros sem esquecer a sua bengala magnificamente adornada ou o seu chapéu inglês que nunca destoava do seu paletó. Usava cabelo curto, cuidadosamente penteado e uma barba quase inexistente e sempre criteriosamente rapada, trazendo sempre consigo um pequeno lenço destinado a limpar os seus redondos óculos, coisa essa que aliás estás sempre a fazer como se de um tique nervoso se tratasse.


Para além de talentoso telegrafista era um ávido estudioso das vias de comunicação, interessava-se por tudo quanto fosse passível de encurtar distâncias entre pessoas desde o serviço de diligências ao serviço nacional de correios, tudo isso ele estudava e com tudo isso ele perdia o seu tempo pensando em modos de aumentar a eficiência e rendimento destes. Não conseguiu ficar assim indiferente à tentação que o sonho de Carling de uma locomotiva mais rápida que o vento e mais veloz que a imaginação constituía, tendo consentido em dedicar até a sua vida se tanto fosse necessário para levar avante essa epopeia.

Por volta de finais de Janeiro desse bom ano que foi 1883 raro era ver estes três separados nem que por um segundo sequer fosse; durante a manhã e a tarde na estação, ao final da tarde na oficina de George e à noite no Howlin’ Weights’ Saloon do único e singular Tom Weights. Em todo o lugar eram vistos juntos e em todo o lugar o tema de conversa era sempre o mesmo: o fantástico moto de Vachel-Carling que mais que o motor de uma locomotiva era agora o motor da imaginação e fantasia de toda uma cidade que à sua volta havia construído todo um universo surreal de projectos e ideias que haviam de levar o homem e a América desde as mais profundas entranhas da terra ao mais alto dos picos dos Himalaias num piscar de olhos; desde o mais inóspito dos desertos ao mais desafiante dos céus.

Muitos eram os que deles se abeiravam com os mais utópicos projectos: desde comboios que potenciados por esse surreal engenho levassem o homem à lua e ás estrelas até vagões que pudessem em segurança levar esses audazes mineiros por essas assustadoras minas rumo às riquezas que nas suas profundezas se encontravam.
A todos dedicavam eles a maior das suas atenções e a todos os projectos e ideias prestavam eles enorme atenção; não que os considerassem praticáveis ou sequer interessantes mas por se terem apercebido que quase sem querer haviam enchido de alegria as miseráveis vidas de um sem número de pessoas e que, pela primeira vezem muito tempo, estas se preocupavam com algo mais do que simplesmente sobreviver ao dia a dia. Faziam planos, discutiam ideias, estabeleciam metas, traçavam rumos e destinos pelo que não seriam eles os três a cortar a estas gentes as asas que elas haviam levado tanto tempo a fazer crescer.

Eram quase comparáveis a um Cristóvão Colombo que à saída do porto de Palos de La Frontera com as suas três naus fazia toda uma Europa sonhar com esse fantástico novo mundo que este se propunha a descobrir. E neste caso, mesmo sendo o globo inteiro já conhecido quase de pólo a pólo quem eram Carling, Wright e Watts para arremeter essas pessoas para fora do magnífico e misterioso novo mundo que se achavam prestes a descobrir?!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Diários de Calico #13

Já dizia o velho adágio que de génio e de louco todos temos um pouco. Havia no entanto, em Calico, uma pessoa que fazia questão de não só respeitar a velha regra como também a elevar ao extremo.

 Chamava-se George Vachel-Carling e era um senhor dos seus respeitosos sessenta e três anos que, segundo muito boa gente deste paradisíaco oásis no meio do deserto de Mojave, não fechava bem a tampa; alguns iam mais longe ainda ao arriscar que ele não a fechava de todo. A todos estes comentários, alguns mais maldosos que outros, respondia ele sempre da mesma forma - Loucos são os burros! Os Génios e os filantropos como eu estão numa classe acima, somos excêntricos!
Excentricidades à parte, a verdade é que não havia muito que se soubesse sobre este educado senhor que animava o dia a dia da cidade com o seu bom humor e cortesia. Vachel-Carling chegara a Calico no Outono de 1882 para dirigir a recentemente construída Estação de Caminhos de Ferro Wells Fargo. Finalmente Calico estava ligada à vasta rede ferroviária da da Union Pacific e a sensação de isolamento que as suas gentes experimentavam cada vez mais era uma coisa que apenas ao passado pertencia.

Como já havia referido, Carling era um senhor de idade respeitável mas não por isso dono e detentor de uma menor vivacidade. Era daqueles velhacos de farto bigode branco como a neve, óculos á ponta do nariz, cabelo que desde há um par de anos teimara em deixar de crescer para cima por falta de força e que nunca era visto sem o seu característico cachimbo de madeira já preta, consequência da idade e do uso, sempre fumegante.
Vestia-se de forma cuidada e elegante e quase sempre do mesmo modo. Raras eram as vezes em que era visto de serviço na estação sem ser de calças e colete de fazenda quase sempre de tons escuros, camisa de algodão branca sempre adornada por uma gravata a condizer em cor e tecido como restante conjunto. Usava sempre uns práticos sapatos de couro preto e a completar toda esta indumentária utilizada um fabuloso relógio de bolso preso por uma soberba e reluzente corrente de pura prata. Quem o visse fora do horário de expediente ficaria decerto bem impressionado pois a todo este conjunto juntava ainda um belíssimo e longo casaco que lhe dava pelo meio das pernas e uma alta cartola que faria o próprio Lincoln suspirar por uma igual; era o mais perfeito exemplo de um gentleman americano.
Era um homem bastante orgulhoso e não menos teimoso, como aliás o era qualquer bom filho do estado da Pensilvânia e fazia questão de sempre que possível ostentar todas as maravilhas que as suas gentes empreenderam em nome do desenvolvimento e progresso dessa grande nação que eram os Estados Unidos da América.

Isto que convosco partilhei era tudo quanto se sabia acerca de George Vachel-Carling, esse caricato personagem que para muitos dos que a Calico chegavam era das primeiras pessoas com quem travariam conhecimento e, quem sabe amizade. Tudo o mais que se falasse sobre ele era pura suposição e especulação; desde se algum dia teria sido casado, o que o teria levado a mudar-se para aquelas paragens (que apenas aos mineiros parecia chamar de forma irrecusável) ou se haveria algum pormenor obscuro acerca do seu passado em relação ao qual se deveriam acautelar.

Nunca se conseguiu descobrir com certeza se algum dia fora casado apesar de tudo indicar para isso: não só através da forma quase brusca e denunciada com que se esquivava a questões de amores e outras venturas que tais mas também através do hábito que tinha em mexer no seu dedo anelar esquerdo como se um anel ainda neste se encontrasse.
A lógica ditaria que sendo assim então não seria viúvo mas no caso da excêntrica personalidade de George a lógica era coisa que de um momento para o outro corria o risco de cair num redondo e completo erro. Esta trivial questão ganhou tanta atenção por parte da população que uma das casas de jogo de Calico, a Dices & Decks, chegou mesmo a lançar uma aposta sem data limite sobre qual a razão para o fim do casamento de Vachel-Carling.
Inúmeras foram as vezes em que amigos ou até mesmo forasteiros, que se encontravam apenas de passagem, se acercavam do intrépido funcionário da Wells Fargo com as mais aliciantes propostas de divisão de lucros relativos à aposta da Dices & Decks; alguns havia que lhe chegaram a oferecer noventa porcento dos ganhos. A todos George dava prontamente a mesma resposta: - Não vá o Presidente Chester Arthur morrer antes disso acontecer e estará esta grandiosa nação bem entregue por longos e dourados anos.

 Não era, contudo, apenas este aspecto relacionado com Carling que contribuía para o incessante interesse que a cidade de Calico por si nutria. Como a sua profissão o sugeria, George era um ávido entusiasta da industrialização, sendo um incontestável estudioso das máquinas a vapor e, como tal não poderia deixar de ser, um amante das locomotivas as quais, nas suas próprias palavras, descrevia como sendo a mais estonteante e fascinante invenção do génio humano depois da roda. Considerava-as como sendo os cavalos de ferro e fogo que mais que ligar este grande território de costa a costa uniam as suas gentes e fortaleciam as suas relações.
 Descrevia-as apaixonadamente como os fieis veículos do saber, do conhecimento e da paixão. Deste modo, anexamente à casa que para si havia sido construída tinha montado uma colossal oficina na qual, em resposta a todos os porquês e questões que tais, tencionava vir a descobrir um modo de transformar a locomotiva no mais fiel, infalível e rápido dos transportes a tal ponto que não pudesse ser nem sequer momentaneamente ultrapassada por um Mustang Puro Sangue no auge da sua forma e vitalidade. ~
A ideia era de facto fascinante e propunha-se a acabar de vez não só com o oficio de assaltante de comboios, pelo menos no que aos a cavalo o faziam, como também a tornar inexistente o medo relativamente aos ataques de índios aos comboios, coisas que na altura em algumas regiões do Oeste Americano era quase tão frequente como chuva em Inglaterra num dia normal, o que por si só já não era pouco!

 Num país que ainda vivia na amargura do massacre que George Armstrong Custer e as suas magníficas fileiras de soldados americanos orgulhosos haviam sofrido em Little Big Horn, em 1876, este magnifico projecto a que Carling se propunha tinha um significado muito maior que o simples avanço tecnológico, representava o orgulho americano que uma vez mais se dispunha a contra tudo e todos garantir a segurança dos seus concidadãos perante esses selváticos bárbaros de pele vermelha.

 Muitos houve que se questionaram sobre o modo através do qual George se propunha a atingir o objectivo que definira por considerarem que, sendo as locomotivas movidas a carvão, o único modo de obter esse aumento de velocidade seria construir caldeiras maiores para levarem mais carvão e gerarem mais pressão do vapor. A proposta de George, em resposta a estas problemáticas era simples - Se a fonte de energia já não é suficiente faz-se uma nova; se o combustível já não é adequado, cria-se um novo!
Carling pretendia construir um engenho que fosse capaz em metade do espaço e peso produzir o dobro da potência, algo que segundo ele iria revolucionar por completo os conceitos de mecânica e termodinâmica até então existentes e que lançaria a América á conquista desse continente ainda selvagem que era o seu e do século 20 que a passos largos se aproximava sorrateiro prestes a assassinar o seu predecessor sem a mínima dó nem piedade.

Houve quem levasse ao extremo a ideia e imaginasse carruagens que dispensassem cavalos e movidas com esse engenho; outros ainda mais ousados divagam sobre se tal maravilha não poderia até levar o homem e a América á conquista dos céus, que desde há milénios eram domínio indiscutível da brava águia e do veloz falcão.

Se a ideia era praticável ou não isso de pouco importava, Vachel-Carling havia conseguido em muito pouco tempo que aquelas bravas gentes fizessem algo que há muito haviam esquecido: Sonhar! Sonhar sem ter por limite restrições pré estabelecidas e nunca antes combatidas. Sonhar mais vasto que o horizonte e mais alto que o próprio céu!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Diários de Calico #12

Creio, meus fiéis companheiros, ter chegado a hora de finalmente vos desvendar o final desta tempestuosa história de amor. Faço-o enquanto lá fora a chuva cai impiedosa sobre o mundo não deixando escapar nada à sua fúria; foi numa noite tal e qual como esta que Patrick Williams irrompeu pelo quarto de De Lil como se o fim do mundo estivesse eminente. Não disse nem uma palavra, simplesmente tomou a sua mão e confessou-lhe que não aguentava nem mais um momento sem poder saber que para sempre a teria por companheira, que não aguentava a incerteza de quando seria agraciado pelo seu próximo beijo ou tão somente pelo perfume dos seus cabelos tão selvaticamente encaracolados. Clarence estava sem reacção, era como se do nada todo um novo mundo tivesse sido revelado mesmo á sua frente, não foi capaz de responder… apenas foi capaz de se entregar nos braços de Williams.

Calico nem queria acreditar, na manhã seguinte, no convite que se encontrava afixado na porta do Saloon, o convite para o casamento de Patrick Williams e Clarence De Lil. A estupefacção era geral, nunca ninguém fora sequer capaz de imaginar que um homem tão aparentemente vil quanto Bill pudesse ser apologista do casamento mas a verdade meus amigos é tão-somente esta: Williams não era um homem novo, mas sentia-se como tal.
A cerimónia teria lugar passados sete dias na pequena capela de Calico que parecia ser tão pequena para selar um amor tão intenso e incerto quanto o daqueles dois.

O dia chegou e a pequena e humilde capela parecia agora capaz de rivalizar com as mais belas e requintadas Catedrais românicas que povoam essa França ou essa Itália. Enormes arranjos florais adornavam os bancos, tapetes vermelhos estendiam-se ao longo da nave, fitas do mais brilhante cetim caíam deste o tecto em direcção ao chão e o altar esse nem parecia o mesmo tal era o cuidado com que havia sido preparado.

Clarence havia-se decidido por não usar uma cor tão neutra quanto o Branco, ao invés disso optara por um magnífico vestido de veludo escarlate que lhe assentava na perfeição, era arrojado mas mantinha a classe e o glamour a que havia habituado aquela pequena cidade.
Williams optara por usar um fraque preto com uma camisa branca e um gravatão preto que tão popular era entre os membros da realeza britânica. No bolso do peito optara por levar uma rosa branca em vez do popular lenço dobrado em losango.
Apesar da escolha pouco ortodoxa que ambos fizeram há que admitir que a combinação era perfeita e julgo ainda estar para chegar o dia em que se veja um casal de noivos tão bem entrelaçado em tudo, não só nos trajes escolhidos como também nos olhares ou nos suspiros.

*

Antes de me adiantar mais façamos uma pequena pausa para contar algo que considero importantíssimo e que por um enorme erro omiti, quem sabe entusiasmado por esta bela história de amor. Antes de Williams ter chegado à cidade, Clarence era constantemente cortejada por um jovem oficial do Ministério da Justiça que se encontrava ali destacado, de seu nome John Harvey Booth.
Apesar do posto que ocupava Booth não era de todo uma pessoa bem formada, tinha alguma educação sim e chegara inclusive a estudar em Harvard de onde viria a ser expulso por em certa altura ter ameaçado um professor que o boxearia à inglesa. Em muita verdade apenas havia obtido aquele cargo graças à ajuda do seu irmão que era um influente político no estado da Califórnia.
Acontece que Clarence nunca vira o que quer que fosse em John Harvey para além de um menininho da cidade que nunca tivera de se esforçar por nada na vida e que agora acabava ali com um ganha-pão que não merecia. Várias e frustradas foram as tentativas de Booth para agradar a De Lil mas esta sempre respondeu às suas investidas com uma maciça muralha de desinteresse. Foi no meio desta desajeitada corte que Patrick Williams chegou aquele paraíso da Califórnia que todos conhecemos por Calico.

Como devem depreender, nada do que se seguira agradara a John, contudo ele sempre mantera a esperança que tal como fizera com outros Clarence afastasse Bill. A linha de raciocínio era lógica, só houve uma pequena possibilidade que não havia sido tida em conta: A de Clarence se apaixonar verdadeiramente tal como sucedeu.

*

Eis-nos assim no dia do casamento, um soalheiro 17 de Março, a marcha nupcial percorria e enchia toda a cidade e De Lil entrava, escoltada pelo telegrafista, seu amigo de longa data, deslumbrando todos com a beleza do seu vestido. Tudo parecia normal até que Clarence entre sorrisos depara-se com um altar vazio, Williams não estava onde tão apaixonadamente uma semana antes havia jurado estar, deteve-se, o sorriso rapidamente desapareceu, o ramo de rosas caiu pelo chão e com ele a música, fez-se um silêncio agoniante enquanto Lil olhava desesperada em todas as direcções tentando entender o que se passava.

Nesse preciso momento uma série de tiros ecoam pelo ar e Clarence sai a correr da igreja em pânico temendo por aquilo que sempre se havia recusado a acreditar: e se, Patrick Williams fosse realmente um escumalha do piorio?

Fora da igreja, no largo, estavam paradas várias carruagens daquilo que hoje seria conhecido por FBI. Então esses mesmos oficiais de justiça tinham a designação de Marshall. Aparentemente haviam seguido uma pista que localizava o assaltante do Banco Federal de São Francisco ali, na pequena Calico, e encontravam-se agora a cercar o Saloon de De Lil onde segundo as suas ‘fontes’ indicavam se escondia o patife. Haviam disparado tiros de aviso para que este se entregasse e esperavam agora uma reacção.
Subitamente uma das portas do Saloon abre-se e de dentro sai não mais não menos que Patrick Williams, vestindo o seu belo fraque, que se dirigia desarmado para os oficiais para se entregar quando de repente uma bala é disparada e atinge Bill no peito fazendo este cair quase como um espantalho. O atirador havia sido nada mais nada menos que o desgraçado John Harvey Booth que, cego pela ira e inveja que sentia por Williams, disparara inconsequentemente alegando a perigosidade daquele criminoso que nunca dera ares de tal.

Clarence observara toda este cena em choque, quando finalmente reagiu gritou a plenos pulmões enquanto corria na direcção de Williams que, ali estendido, se esvaía em sangue. Quando finalmente o consegue abraçar e deitar no seu colo não consegue evitar que as lágrimas lhe escorram da sua cara em direcção à dele. Havia perdido o seu Norte, Sul, havia perdido tudo num irreflectido e ignorante disparo. Simplesmente não conseguia parar de berrar de pânico, medo, desespero… Williams não conseguia falar mas foi capaz de alcançar a mão de De Lil, beija-la muito lenta e calmamente e de seguida depositar nela a rosa outrora branca do seu casaco e agora tingida de vermelho pelo sangue que turbulento saia do seu peito. Não foi capaz de fazer mais nada senão esboçar um sorriso e murmurar ‘Até sempre minha rosa selvagem’.

Certamente ficarão agradados em saber que John Harvey Booth foi acusado de homicídio em primeiro grau, crime que na altura e no estado em questão era punível com pena de morte mas percam já a alegria… novamente a sorte voltou a sorrir a quem menos merecia e Booth ficou apenas preso para a vida.

Já De Lil ficara com muito mais que uma rosa ensanguentada, tinha no seu ventre uma bela flor deixada por Williams, no entanto as memórias dele naquele lugar eram imensas e nunca as conseguiria ultrapassar, restava-lhe por isso a solução de regressar à sua amada São Francisco de onde partira fazia dez anos.

Julgo que por esta altura, como bom anfitrião que tento ser, vos deva falar um pouco sobre mim, chamo-me Sean Patrick Williams e nasci onde vocês muito certeiramente estão a pensar. Só não sou filho de quem vocês estariam a pressupor. Ele era meu avô.

Diários de Calico #11

Se havia um prazer da vida que Clarence apreciava era a dança, toda a gente o sabia mas acontecia que ninguém conseguia atraí-la por essa forma de arte, não que ela fosse superficial, muito pelo contrário. De Lil era uma exímia dançarina, de uma classe a nível que ninguém conseguira igualar até então. Acontece que no então chegara o nosso já velho conhecido Patrick Williams, que apesar de toda a sua aura carregada de maldade e patifaria era um categórico dançarino, faceta essa que De Lil até então desconhecia por completo até um pacato dia em que pelo seu Saloon ecoava uma típica valsa austríaca que na altura tanto destoava do típico Swing que era moda.
Não que isso desagradasse por completo a Bill, apesar de tudo o que já relatei dele admito em parte que talvez tenha exagerado… ele tinha em si alguma sofisticação, especialmente a nível de bom gosto musical, não era requintado ou elitista mas sim capaz de se contentar somente com o melhor, e uma suave valsa enchia as suas medidas. Mas qual não foi o seu espanto ao aperceber-se que além de um requintado gosto De Lil também partilhava do seu prazer pela dança, foi então que, pegando a sua mão quase sem pedir permissão; a lentidão do seu suave gesto havia requisitado toda e qualquer permissão possível e imaginária, à qual era timidamente não soube dizer que não.

Executou na perfeição a saudação típica à qual uma ainda atónita De Lil respondeu com a sua, para logo de seguida Patrick tomar delicadamente a sua cintura e estendo a sua mão esquerda, à qual Clarence não teve como recusar, deslizou suavemente pelas velhas tábuas do soalho mas fê-lo de uma maneira tão perfeita que parecia que o chão era o de um dos mais requintados salões de dança da iluminada Viena. Juntos valsejaram durante longos minutos, executando as voltas e contravoltas na perfeição deixara a madame completamente maravilhada mas não rendida, ainda, foi então que quase por magia a música saltara de uma adormecida valsa para um vivo e tempestuoso swing, daqueles dignos de deixar mesmo um experiente pianista à beira do colapso tal era a intensidade com as notas saltavam de tecla a tecla, com que as cordas vibravam no contrabaixo ou com a fúria com o ar corria os tubos do trompete.

Mas nem isso chegava para se equiparar à determinação com que Williams mudara o passo e o ritmo da dança, Clarence não era de todo a praticante mais versada do Swing mas nos seus braços, embalada pelo azul dos seus olhos e o preto dos seus cabelos nenhuma dança parecia impossível ou inalcançável, quer fosse a passos rápidos que permitiam aos seus cabelos meio encaracolados voar livremente ou rodopiando segundo um apoio tão firme que era o corpo de Patrick ela encontrava-se completamente rendida àquele estranho personagem a quem já tanto amava e ainda assim tão pouco conhecia…

Diários de Calico #10

Mas se o meu último relato vos faz navegar na mera ilusão de que Patrick e Clarence acabaram juntos então julgo ser meu o dever de vos retirar desse armadilhado pensamento. Em muito boa verdade Patrick Williams era um escumalha do pior que tanta sofisticação e bons modos escondiam de uma forma quase mágica, digno de um mestre do ilusionismo.

Havia uma razão para ele ali estar, ao contrário do que os contos sugiram os príncipes encantados não surgem do nada montados no seu reluzente cavalo branco por entre as brumas primaveris, nem tão pouco eles se destinam a senhoras como De Lil, os príncipes são para princesas e De Lil não era uma nem de perto nem de longe…
Infelizmente de gentleman Patrick Williams só tinha mesmo a fama, era um foragido da justiça que havia assaltado um banco em São Francisco e pelo caminho alvejado mortalmente um pequeno moço que vendia jornais e que por um macabro acaso foi apanhado no meio da troca de tiros entre ele e as forças da autoridade.

Tentando refugiar-se não só das incessantes buscas pela sua pessoa mas também para esquecer a jovem vida que tão abrupta e acidentalmente roubara Bill rumou a Calico, que tal como para muitos outros era senão um El Dorado no meio do deserto.
Apesar da sua falta de escrúpulos não se considerava um rude e cruel assassínio nem tão pouco considerava uma vida humana como um sacrifício aceitável para atingir os seus objectivos e aquele pequeno rapaz de olhos arregalados agora vazados de vida seria algo que lhe perduraria e perseguiria para sempre.


Como já devem ter entendido, Williams é o típico anti herói que apesar de ser um patife encanta com o seu malévolo e misterioso passado, e o facto de ter tão vilmente cessado com uma vida que ia na sua primavera não serve senão para aguçar a curiosidade neste sombrio personagem.

Tal como vós, caros leitores, também De Lil não conseguiu resistir a estes negros encantos e caiu no seu jugo de amor e sedução mas para aqueles que possam pensar que ela o fez sem o menor dos cuidados desengane-se, De Lil cedo percebeu que Williams não era aquilo que tão discretamente tentava aparentar mas percebeu igualmente que havia algo nele que a fascinava e talvez, quem sabe, se tenha deixado iludir sob a ingénua esperança de que o pudesse controlar na impossibilidade de o mudar.

Se mo perguntassem diria que Patrick e Clarence nunca confiaram realmente um no outro, nenhum deles esperava que o outro abdicasse do que quer que fosse em prol do outro, nenhum tinha irrisórias esperanças ou sonhos de uma vida partilhada a dois, viam-se como duas matreiras raposas que, dentro dos limites do humanamente aceitável, tinham uma relação que assentava num entendimento mútuo e respeito mas, até nestes casos o amor pode vir a surgir... Improvável, mas não impossível...

Diários de Calico #9

De todas as histórias e mitos do oeste que teimam em resistir à poeira do tempo havia um que sempre que fascinou as história de amor profundo e vil entre Madame De Lil e o Diabólico Bill, assim era chamada esta velha raposa do deserto, um arruaceiro puro e duro que durante muito tempo se diz ter calcorreado tudo quanto fosse metro quadrado de deserto até por fim ter sido um dos primeiros a fixar-se em Calico.
Conta-se que por essa altura o velho Finn ainda não tinha descoberto esta sua Irlanda do Deserto e que a cargo do Saloon estava uma senhora nos seus quarentas de nome Clarence De Lil, Madame De Lil para a maioria. E como para muitos, foi o amor de perdição de Bill, esse velho foragido não conseguiu resistir à beleza daquela senhora que tanto cantava e encantava mesmo sabendo-se pouco ou nada sobre o seu passado.
Mas falando verdade, De Lil também ficou perdida de amores por este visitante que chegara silenciosamente e não tentando dar nas vistas.

Ele não a perdera de vista um único minuto desde que chegara, havia uma imensa escolha de alojamento mas ele insistiu em ficar ali mesmo, no Saloon, perto do seu novo e aparentemente inabalável amor. Todos os dias descia à mesma hora, oito e meia da manhã, saía, dava os bons dias e rumava á cidade, voltava para almoçar ás doze horas e vinte minutos em ponto, finda a refeição tomava um copo de whiskey irlandês de puro malte e voltava a rumar á cidade para voltar definitivamente por volta das oito menos um quarto, altura essa em que comia algo e se sentava ao balcão do Saloon para não mais dali sair a não ser quando Clarence fechava.
Não falava com muita gente à parte da saudação matinal habitual a De Lil mas também nunca falhava um pagamento, sempre a pronto e sem falta. Toda esta rotina levantou a desconfiança entre os habitantes sobre qual seria o passado de Patrick Williams, assim era o nome verdadeiro desse Bill Diabólico. Uns apostavam em contrabandista, outros diziam que era um daqueles novos chefes de máfia vindos da Europa à conquista da América Selvagem, mas apesar desta divergência havia um consenso, tivesse feito o que tivesse feito, nada de bom poderia algum dia sair dali pelo que a maioria optava por manter a distância, pois... A maioria...

Já falei que De Lil havia ficado, à sua maneira recatada e discreta, perdida de amores por este novo personagem, intrigava-a o passado deste refinado mas misterioso senhor. Por um lado tinha feições rígidas e cansadas, típicas de quem passava uma vida de solo a solo sempre parar mas por outro tinha a educação, a pontualidade e a sofisticação de um puro ‘gentleman’. Se tudo isto não chegasse para fazer qualquer mulher suspirar seus amores aos céus, William era ainda um exímio tocador de Violino e quando disposto a tal, dava um ar da sua graça saltitando com o seu arco corda a corda o seu velho mas belo violino.
Com o tempo a cumplicidade latente entre Bill e De Lil era cada vez mais notória, ele havia perdido a sua feição rígida e esporadicamente esboçava um sorriso de pura felicidade. Havia até quem jurasse a pés juntos tê-los visto, numa limpa noite de Luar a passear pelas ruas vazias de Calico trocando poucas palavras mas imensos olhares.
Se a história for fiel á realidade então as suspeições infundadas de pouco ou nada importavam a partir do momento em que em pleno dia De Lil abandonava o seu saloon, de chapéu-de-sol ao ombro e acompanhada por William para um passeio por aquela espécie de rua que era nada mais que um amontoado de poeira assente. Não se entendia para onde passeavam nem o que tão belo haveria para ver naquele paraíso de pó e prata, quando a ouvi em criança não fazia mesmo sentido, se não havia baloiços nem bolas então para que iam eles andar?

Hoje, 50 anos depois percebo... nem sempre, num passeio, o importante é o destino ou a paisagem mas sim a singela companhia de uma bela rapariga, os olhares que se trocam ou, quem sabe, as palavras que ficam por dizer à custa de um olhar que por vezes recita uma autêntica ode ao amor. E enquanto para um jovem no seu apogeu conversar possa parecer patético, para duas velhas raposas como Bill e De Lil, para eles, recordar era mais que viver, era amar...