sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Diários de Calico #15

A oficina de Vachel-Carling, essa modesta fábrica de sonhos que ele ali construíra naquela pequena e pacata Calico, era um antigo barracão que se situava nas traseiras de sua casa.
Era um espaço amplo mas altamente afetado pela idade e pelos humores algo incertos do tempo. Tinha uma população constante de aranhas e outros que tais insetos a quem as podres falhas do soalho e das paredes ofereciam uma apelativa moradia. Os vidros eram fuscos e estavam carregados de pó, que neles se havia acumulado ao longo de largos anos e quando penetrados pela luz do sol enchiam a sala com um brilho fusco, quente mas de aspeto sombrio.

Carling, Wright e Watts acreditavam que era necessário dotar aquele espaço de todos os confortos que achassem úteis aos seus génios; assim haviam decidido que a um canto daquele enorme espaço criariam uma zona de convívio onde, no seu dia-a-dia, se pudessem sentar e falar de outras coisas que não o seu famigerado motor. Deviam reservar igualmente um espaço para uma enorme secretária onde pudessem estender longos papéis cheios de esquemas e planos sem que estes se misturassem com ferramentas ou puro lixo.

Ao centro deveria estar localizada a enorme banca na qual seria montado esse Golias da maquinaria motorizada. Começaram assim as obras de remodelação daquele espaço que em breve seria a mais perfeita designação do pote de ouro no fundo do Arco-íris. Não foram poucos os momentos de rebaldaria que por ali se protagonizaram, especialmente quando Fred decidia parar a meio da tarde para uma sesta e era brutalmente acordado por Douglas com o pretexto de que o tempo era escasso e todos o minuto valioso; logo se gerava a confusão com Watts a ameaçar Wright que o boxearia à inglesa, ameaça essa a que este respondia com a oferta de uma demonstração de violência gratuita irlandesa.
Eram momentos de tensão altamente cómicos e prontamente sanados por George que a fim de acabar com o passatempo diário daqueles dois palermas se viu forçado a instituir a hora da sesta a fim de garantir que aqueles dois desgraçados não se matariam um ao outro.

Toda a cidade tomara um particular interesse nestas obras pelo que muitos foram os que se disponibilizaram a ajudar: desde o Merceeiro Jim Lane, que se dispôs a achar os melhores materiais aos melhores preços, até à velha Lucy Bell que pontualmente às cinco da tarde lhes ia levar um lanche de deixar água na boca a fim de lhes restituir as forças para o resto da jornada diária.
Por volta dos finais de Setembro de 1882 a oficina de Vachel-Carling estava concluída. Haviam decidido chamar-lhe Oficina de Hefesto, o ferreiro dos Deus gregos, por considerarem que aquilo que ali se propunham a construir rivalizaria com os Trovões de Zeus, o Tridente de Poseidon ou o capacete de Hades a nível de maravilha.

Quem entrasse na oficina encontrava logo à sua direita o tão falado espaço de convívio, composto por uma pequena carpete redonda, no centro da qual se encontrava uma pequena mesa amontada de revistas e jornais. À volta desta havia três confortáveis poltronas cada qual com a sua mesinha de apoio. Se ideias geniais ainda restassem àquele trio então com toda a certeza que iriam ter lugar naquele recanto da oficina. Do lado esquerdo junto da entrada encontrava-se a tão badalada secretária que dentro em pouco estaria a abarrotar de papelada ciêntifica e técnica. No meio, debaixo de um forte candeeiro, estava uma enorme banda que media pouco mais de seis metros quadrados e onde, a seu tempo o engenho seria convertido em arte e tecnologia.

Ao fundo, na parede, existia um enorme quadro negro a toda a largura desta destinado aos mais frenéticos e feios rabiscos de Carling.

Toda a sala era povoada por enormes janelas, as quais eram adornadas por negras e grossas cortinadas destinadas a, quando necessário, obstruir a luz ofuscante do sol; já o chão era do mais negro soalho que se havia encontrado a fim de disfarçar a sujidade que com o tempo certamente se iria acumular. Por capricho, Carling havia decidido colocar nas traves do teto pequenas esculturas em madeira representantes das mais variadas religiões, desde o cristianismo ao islamismo, passando pelo budismo e até pelo xintoísmo. 
A início esta escolha havia causado apreensão aos seus dois companheiros, que propósito poderia servir uma merda superstição quando o que os três se propunham a fazer não saia nem um pouco do campo da lógica e da razão? Nas sábias palavras de Carling: “Se até Colombo, ao fazer-se ao mar rumo ao desconhecido e mesmo convicto da sua teoria da esfericidade da terra, fez questão de adornar as suas velas com a cruz de Cristo; porque não haveriamos nós então de recorrer a tudo quanto possamos a fim de garantir o bom sucesso desta nossa empreitada?”


Estava assim dado o primeiro passo rumo a esta fantástica e sofrível demanda, uma como Calico nunca antes vira nem nunca mais iria voltar a ver, o que ali sairia? Apenas o tempo o sabia, e se pudesse falar….