sábado, 4 de agosto de 2012

Diários de Calico #14


Se acharem que o nivel de loucura de tal projecto era demasiado para um homem só, mesmo sendo esse homem Vachel-Carling, então estão certíssimo mas, para infelicidade de alguns e felicidade da maioria, a sua loucura não se encontrava sozinha neste empreendimento. 
Tinha a ajuda-lo em interesse e em engenho o mecânico de serviço da Wells Fargo e o telegrafista cujo posto se encontrava sediado no mesmo terminal ferroviário; o primeiro chamava-se Douglas Wright e o segundo Fred Watts.


Douglas era um aficionado por tudo quanto rolasse, para ele a vida só fazia sentido se estivesse rodeado por toda essa parafernália de objectos que com um pouco de vapor ganham vida e soltam um sonoro rugido. Dizia muitas vezes que sem as maravilhas da mecânica e da dinâmica este mundo ainda continuaria a andar a pé e a fazer tudo manualmente; via a Revolução Industrial do mesmo modo que os humanistas viam o Renascimento ou os liberais a Revolução Francesa. Era um rapaz no final dos seus vintes que tinha um cabelo naturalmente eriçado, sobrancelhas pronunciadas e uma barba de três dias de um preto de meter inveja ao escuro da noite. Juntando a tudo isto a sua predilecção por camisolas de gola levantada, gravatões e coletes de pontas afiadas estávamos perante um personagem com um ar loucamente de génio mas não por isso menos simpático e sorridente. Nunca deixava umas boas tardes sem resposta e fazia questão de cumprimentar todos quantos lhe dirigiam a palavra.
Também ele chegara a Calico em busca de um novo rumo para a sua vida e de ofertas de trabalho mais atractivas que aquelas que haviam na grande cidade da qual era originário: São Francisco.


A empatia que estabeleceu com Vachel-Carling foi quase imediata; era como se fossem pai e filho separados à nascença tal era a cumplicidade que pouco tempo depois de se conhecerem já partilhavam. Mas em boa verdade, a gota de água para o sossego ou se preferirem desassossego de Calico foi o dia em que George com ele resolveu partilhar o seu ambicioso projecto no frio e árido mês de Dezembro de1882, desse dia em diante nunca mais houve paz naquele pacato povoado florescente rodeado de vento e pó.

Deste audaz e empreendedor grupo, o mais contido, mas não por isso menos esforçado, era sem dúvida alguma Fred Watts. Era um bon vivant sulista dos seus confortáveis trinta e cinco anos que passava os dias com saudades da sua Virgínia onde, segundo ele, se tinham a melhor qualidade de vida, os dias eram sossegados e o ar era puro, mercê da sua ainda fraca industrialização. Contudo e de acordo com o que dizia, este tipo de vida sossegada tinha como única consequência negativa a escassez de postos de trabalho relacionados com o avanço tecnológico do país; não lhe restando senão outra solução que partir em busca de uma cidade em crescimento e que necessitasse dos hábeis serviços de um telegrafista. Foi Calico o paraíso para si também, como o fora para outras centenas antes, quando a este fim de mundo, que para nós era o céu, chegou no inicio de 1882 ainda o posto de telegrafo tinha um gabinete improvisado no Saloon do velho Joe em plena avenida (se é que assim se lhe podia chamar) principal de Calico. 
Como bom sulista que era primava sempre por se vestir bem, exemplarmente e nunca fugindo aos tons esverdeados escuros sem esquecer a sua bengala magnificamente adornada ou o seu chapéu inglês que nunca destoava do seu paletó. Usava cabelo curto, cuidadosamente penteado e uma barba quase inexistente e sempre criteriosamente rapada, trazendo sempre consigo um pequeno lenço destinado a limpar os seus redondos óculos, coisa essa que aliás estás sempre a fazer como se de um tique nervoso se tratasse.


Para além de talentoso telegrafista era um ávido estudioso das vias de comunicação, interessava-se por tudo quanto fosse passível de encurtar distâncias entre pessoas desde o serviço de diligências ao serviço nacional de correios, tudo isso ele estudava e com tudo isso ele perdia o seu tempo pensando em modos de aumentar a eficiência e rendimento destes. Não conseguiu ficar assim indiferente à tentação que o sonho de Carling de uma locomotiva mais rápida que o vento e mais veloz que a imaginação constituía, tendo consentido em dedicar até a sua vida se tanto fosse necessário para levar avante essa epopeia.

Por volta de finais de Janeiro desse bom ano que foi 1883 raro era ver estes três separados nem que por um segundo sequer fosse; durante a manhã e a tarde na estação, ao final da tarde na oficina de George e à noite no Howlin’ Weights’ Saloon do único e singular Tom Weights. Em todo o lugar eram vistos juntos e em todo o lugar o tema de conversa era sempre o mesmo: o fantástico moto de Vachel-Carling que mais que o motor de uma locomotiva era agora o motor da imaginação e fantasia de toda uma cidade que à sua volta havia construído todo um universo surreal de projectos e ideias que haviam de levar o homem e a América desde as mais profundas entranhas da terra ao mais alto dos picos dos Himalaias num piscar de olhos; desde o mais inóspito dos desertos ao mais desafiante dos céus.

Muitos eram os que deles se abeiravam com os mais utópicos projectos: desde comboios que potenciados por esse surreal engenho levassem o homem à lua e ás estrelas até vagões que pudessem em segurança levar esses audazes mineiros por essas assustadoras minas rumo às riquezas que nas suas profundezas se encontravam.
A todos dedicavam eles a maior das suas atenções e a todos os projectos e ideias prestavam eles enorme atenção; não que os considerassem praticáveis ou sequer interessantes mas por se terem apercebido que quase sem querer haviam enchido de alegria as miseráveis vidas de um sem número de pessoas e que, pela primeira vezem muito tempo, estas se preocupavam com algo mais do que simplesmente sobreviver ao dia a dia. Faziam planos, discutiam ideias, estabeleciam metas, traçavam rumos e destinos pelo que não seriam eles os três a cortar a estas gentes as asas que elas haviam levado tanto tempo a fazer crescer.

Eram quase comparáveis a um Cristóvão Colombo que à saída do porto de Palos de La Frontera com as suas três naus fazia toda uma Europa sonhar com esse fantástico novo mundo que este se propunha a descobrir. E neste caso, mesmo sendo o globo inteiro já conhecido quase de pólo a pólo quem eram Carling, Wright e Watts para arremeter essas pessoas para fora do magnífico e misterioso novo mundo que se achavam prestes a descobrir?!

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Diários de Calico #13

Já dizia o velho adágio que de génio e de louco todos temos um pouco. Havia no entanto, em Calico, uma pessoa que fazia questão de não só respeitar a velha regra como também a elevar ao extremo.

 Chamava-se George Vachel-Carling e era um senhor dos seus respeitosos sessenta e três anos que, segundo muito boa gente deste paradisíaco oásis no meio do deserto de Mojave, não fechava bem a tampa; alguns iam mais longe ainda ao arriscar que ele não a fechava de todo. A todos estes comentários, alguns mais maldosos que outros, respondia ele sempre da mesma forma - Loucos são os burros! Os Génios e os filantropos como eu estão numa classe acima, somos excêntricos!
Excentricidades à parte, a verdade é que não havia muito que se soubesse sobre este educado senhor que animava o dia a dia da cidade com o seu bom humor e cortesia. Vachel-Carling chegara a Calico no Outono de 1882 para dirigir a recentemente construída Estação de Caminhos de Ferro Wells Fargo. Finalmente Calico estava ligada à vasta rede ferroviária da da Union Pacific e a sensação de isolamento que as suas gentes experimentavam cada vez mais era uma coisa que apenas ao passado pertencia.

Como já havia referido, Carling era um senhor de idade respeitável mas não por isso dono e detentor de uma menor vivacidade. Era daqueles velhacos de farto bigode branco como a neve, óculos á ponta do nariz, cabelo que desde há um par de anos teimara em deixar de crescer para cima por falta de força e que nunca era visto sem o seu característico cachimbo de madeira já preta, consequência da idade e do uso, sempre fumegante.
Vestia-se de forma cuidada e elegante e quase sempre do mesmo modo. Raras eram as vezes em que era visto de serviço na estação sem ser de calças e colete de fazenda quase sempre de tons escuros, camisa de algodão branca sempre adornada por uma gravata a condizer em cor e tecido como restante conjunto. Usava sempre uns práticos sapatos de couro preto e a completar toda esta indumentária utilizada um fabuloso relógio de bolso preso por uma soberba e reluzente corrente de pura prata. Quem o visse fora do horário de expediente ficaria decerto bem impressionado pois a todo este conjunto juntava ainda um belíssimo e longo casaco que lhe dava pelo meio das pernas e uma alta cartola que faria o próprio Lincoln suspirar por uma igual; era o mais perfeito exemplo de um gentleman americano.
Era um homem bastante orgulhoso e não menos teimoso, como aliás o era qualquer bom filho do estado da Pensilvânia e fazia questão de sempre que possível ostentar todas as maravilhas que as suas gentes empreenderam em nome do desenvolvimento e progresso dessa grande nação que eram os Estados Unidos da América.

Isto que convosco partilhei era tudo quanto se sabia acerca de George Vachel-Carling, esse caricato personagem que para muitos dos que a Calico chegavam era das primeiras pessoas com quem travariam conhecimento e, quem sabe amizade. Tudo o mais que se falasse sobre ele era pura suposição e especulação; desde se algum dia teria sido casado, o que o teria levado a mudar-se para aquelas paragens (que apenas aos mineiros parecia chamar de forma irrecusável) ou se haveria algum pormenor obscuro acerca do seu passado em relação ao qual se deveriam acautelar.

Nunca se conseguiu descobrir com certeza se algum dia fora casado apesar de tudo indicar para isso: não só através da forma quase brusca e denunciada com que se esquivava a questões de amores e outras venturas que tais mas também através do hábito que tinha em mexer no seu dedo anelar esquerdo como se um anel ainda neste se encontrasse.
A lógica ditaria que sendo assim então não seria viúvo mas no caso da excêntrica personalidade de George a lógica era coisa que de um momento para o outro corria o risco de cair num redondo e completo erro. Esta trivial questão ganhou tanta atenção por parte da população que uma das casas de jogo de Calico, a Dices & Decks, chegou mesmo a lançar uma aposta sem data limite sobre qual a razão para o fim do casamento de Vachel-Carling.
Inúmeras foram as vezes em que amigos ou até mesmo forasteiros, que se encontravam apenas de passagem, se acercavam do intrépido funcionário da Wells Fargo com as mais aliciantes propostas de divisão de lucros relativos à aposta da Dices & Decks; alguns havia que lhe chegaram a oferecer noventa porcento dos ganhos. A todos George dava prontamente a mesma resposta: - Não vá o Presidente Chester Arthur morrer antes disso acontecer e estará esta grandiosa nação bem entregue por longos e dourados anos.

 Não era, contudo, apenas este aspecto relacionado com Carling que contribuía para o incessante interesse que a cidade de Calico por si nutria. Como a sua profissão o sugeria, George era um ávido entusiasta da industrialização, sendo um incontestável estudioso das máquinas a vapor e, como tal não poderia deixar de ser, um amante das locomotivas as quais, nas suas próprias palavras, descrevia como sendo a mais estonteante e fascinante invenção do génio humano depois da roda. Considerava-as como sendo os cavalos de ferro e fogo que mais que ligar este grande território de costa a costa uniam as suas gentes e fortaleciam as suas relações.
 Descrevia-as apaixonadamente como os fieis veículos do saber, do conhecimento e da paixão. Deste modo, anexamente à casa que para si havia sido construída tinha montado uma colossal oficina na qual, em resposta a todos os porquês e questões que tais, tencionava vir a descobrir um modo de transformar a locomotiva no mais fiel, infalível e rápido dos transportes a tal ponto que não pudesse ser nem sequer momentaneamente ultrapassada por um Mustang Puro Sangue no auge da sua forma e vitalidade. ~
A ideia era de facto fascinante e propunha-se a acabar de vez não só com o oficio de assaltante de comboios, pelo menos no que aos a cavalo o faziam, como também a tornar inexistente o medo relativamente aos ataques de índios aos comboios, coisas que na altura em algumas regiões do Oeste Americano era quase tão frequente como chuva em Inglaterra num dia normal, o que por si só já não era pouco!

 Num país que ainda vivia na amargura do massacre que George Armstrong Custer e as suas magníficas fileiras de soldados americanos orgulhosos haviam sofrido em Little Big Horn, em 1876, este magnifico projecto a que Carling se propunha tinha um significado muito maior que o simples avanço tecnológico, representava o orgulho americano que uma vez mais se dispunha a contra tudo e todos garantir a segurança dos seus concidadãos perante esses selváticos bárbaros de pele vermelha.

 Muitos houve que se questionaram sobre o modo através do qual George se propunha a atingir o objectivo que definira por considerarem que, sendo as locomotivas movidas a carvão, o único modo de obter esse aumento de velocidade seria construir caldeiras maiores para levarem mais carvão e gerarem mais pressão do vapor. A proposta de George, em resposta a estas problemáticas era simples - Se a fonte de energia já não é suficiente faz-se uma nova; se o combustível já não é adequado, cria-se um novo!
Carling pretendia construir um engenho que fosse capaz em metade do espaço e peso produzir o dobro da potência, algo que segundo ele iria revolucionar por completo os conceitos de mecânica e termodinâmica até então existentes e que lançaria a América á conquista desse continente ainda selvagem que era o seu e do século 20 que a passos largos se aproximava sorrateiro prestes a assassinar o seu predecessor sem a mínima dó nem piedade.

Houve quem levasse ao extremo a ideia e imaginasse carruagens que dispensassem cavalos e movidas com esse engenho; outros ainda mais ousados divagam sobre se tal maravilha não poderia até levar o homem e a América á conquista dos céus, que desde há milénios eram domínio indiscutível da brava águia e do veloz falcão.

Se a ideia era praticável ou não isso de pouco importava, Vachel-Carling havia conseguido em muito pouco tempo que aquelas bravas gentes fizessem algo que há muito haviam esquecido: Sonhar! Sonhar sem ter por limite restrições pré estabelecidas e nunca antes combatidas. Sonhar mais vasto que o horizonte e mais alto que o próprio céu!