sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Diários de Calico #13

Já dizia o velho adágio que de génio e de louco todos temos um pouco. Havia no entanto, em Calico, uma pessoa que fazia questão de não só respeitar a velha regra como também a elevar ao extremo.

 Chamava-se George Vachel-Carling e era um senhor dos seus respeitosos sessenta e três anos que, segundo muito boa gente deste paradisíaco oásis no meio do deserto de Mojave, não fechava bem a tampa; alguns iam mais longe ainda ao arriscar que ele não a fechava de todo. A todos estes comentários, alguns mais maldosos que outros, respondia ele sempre da mesma forma - Loucos são os burros! Os Génios e os filantropos como eu estão numa classe acima, somos excêntricos!
Excentricidades à parte, a verdade é que não havia muito que se soubesse sobre este educado senhor que animava o dia a dia da cidade com o seu bom humor e cortesia. Vachel-Carling chegara a Calico no Outono de 1882 para dirigir a recentemente construída Estação de Caminhos de Ferro Wells Fargo. Finalmente Calico estava ligada à vasta rede ferroviária da da Union Pacific e a sensação de isolamento que as suas gentes experimentavam cada vez mais era uma coisa que apenas ao passado pertencia.

Como já havia referido, Carling era um senhor de idade respeitável mas não por isso dono e detentor de uma menor vivacidade. Era daqueles velhacos de farto bigode branco como a neve, óculos á ponta do nariz, cabelo que desde há um par de anos teimara em deixar de crescer para cima por falta de força e que nunca era visto sem o seu característico cachimbo de madeira já preta, consequência da idade e do uso, sempre fumegante.
Vestia-se de forma cuidada e elegante e quase sempre do mesmo modo. Raras eram as vezes em que era visto de serviço na estação sem ser de calças e colete de fazenda quase sempre de tons escuros, camisa de algodão branca sempre adornada por uma gravata a condizer em cor e tecido como restante conjunto. Usava sempre uns práticos sapatos de couro preto e a completar toda esta indumentária utilizada um fabuloso relógio de bolso preso por uma soberba e reluzente corrente de pura prata. Quem o visse fora do horário de expediente ficaria decerto bem impressionado pois a todo este conjunto juntava ainda um belíssimo e longo casaco que lhe dava pelo meio das pernas e uma alta cartola que faria o próprio Lincoln suspirar por uma igual; era o mais perfeito exemplo de um gentleman americano.
Era um homem bastante orgulhoso e não menos teimoso, como aliás o era qualquer bom filho do estado da Pensilvânia e fazia questão de sempre que possível ostentar todas as maravilhas que as suas gentes empreenderam em nome do desenvolvimento e progresso dessa grande nação que eram os Estados Unidos da América.

Isto que convosco partilhei era tudo quanto se sabia acerca de George Vachel-Carling, esse caricato personagem que para muitos dos que a Calico chegavam era das primeiras pessoas com quem travariam conhecimento e, quem sabe amizade. Tudo o mais que se falasse sobre ele era pura suposição e especulação; desde se algum dia teria sido casado, o que o teria levado a mudar-se para aquelas paragens (que apenas aos mineiros parecia chamar de forma irrecusável) ou se haveria algum pormenor obscuro acerca do seu passado em relação ao qual se deveriam acautelar.

Nunca se conseguiu descobrir com certeza se algum dia fora casado apesar de tudo indicar para isso: não só através da forma quase brusca e denunciada com que se esquivava a questões de amores e outras venturas que tais mas também através do hábito que tinha em mexer no seu dedo anelar esquerdo como se um anel ainda neste se encontrasse.
A lógica ditaria que sendo assim então não seria viúvo mas no caso da excêntrica personalidade de George a lógica era coisa que de um momento para o outro corria o risco de cair num redondo e completo erro. Esta trivial questão ganhou tanta atenção por parte da população que uma das casas de jogo de Calico, a Dices & Decks, chegou mesmo a lançar uma aposta sem data limite sobre qual a razão para o fim do casamento de Vachel-Carling.
Inúmeras foram as vezes em que amigos ou até mesmo forasteiros, que se encontravam apenas de passagem, se acercavam do intrépido funcionário da Wells Fargo com as mais aliciantes propostas de divisão de lucros relativos à aposta da Dices & Decks; alguns havia que lhe chegaram a oferecer noventa porcento dos ganhos. A todos George dava prontamente a mesma resposta: - Não vá o Presidente Chester Arthur morrer antes disso acontecer e estará esta grandiosa nação bem entregue por longos e dourados anos.

 Não era, contudo, apenas este aspecto relacionado com Carling que contribuía para o incessante interesse que a cidade de Calico por si nutria. Como a sua profissão o sugeria, George era um ávido entusiasta da industrialização, sendo um incontestável estudioso das máquinas a vapor e, como tal não poderia deixar de ser, um amante das locomotivas as quais, nas suas próprias palavras, descrevia como sendo a mais estonteante e fascinante invenção do génio humano depois da roda. Considerava-as como sendo os cavalos de ferro e fogo que mais que ligar este grande território de costa a costa uniam as suas gentes e fortaleciam as suas relações.
 Descrevia-as apaixonadamente como os fieis veículos do saber, do conhecimento e da paixão. Deste modo, anexamente à casa que para si havia sido construída tinha montado uma colossal oficina na qual, em resposta a todos os porquês e questões que tais, tencionava vir a descobrir um modo de transformar a locomotiva no mais fiel, infalível e rápido dos transportes a tal ponto que não pudesse ser nem sequer momentaneamente ultrapassada por um Mustang Puro Sangue no auge da sua forma e vitalidade. ~
A ideia era de facto fascinante e propunha-se a acabar de vez não só com o oficio de assaltante de comboios, pelo menos no que aos a cavalo o faziam, como também a tornar inexistente o medo relativamente aos ataques de índios aos comboios, coisas que na altura em algumas regiões do Oeste Americano era quase tão frequente como chuva em Inglaterra num dia normal, o que por si só já não era pouco!

 Num país que ainda vivia na amargura do massacre que George Armstrong Custer e as suas magníficas fileiras de soldados americanos orgulhosos haviam sofrido em Little Big Horn, em 1876, este magnifico projecto a que Carling se propunha tinha um significado muito maior que o simples avanço tecnológico, representava o orgulho americano que uma vez mais se dispunha a contra tudo e todos garantir a segurança dos seus concidadãos perante esses selváticos bárbaros de pele vermelha.

 Muitos houve que se questionaram sobre o modo através do qual George se propunha a atingir o objectivo que definira por considerarem que, sendo as locomotivas movidas a carvão, o único modo de obter esse aumento de velocidade seria construir caldeiras maiores para levarem mais carvão e gerarem mais pressão do vapor. A proposta de George, em resposta a estas problemáticas era simples - Se a fonte de energia já não é suficiente faz-se uma nova; se o combustível já não é adequado, cria-se um novo!
Carling pretendia construir um engenho que fosse capaz em metade do espaço e peso produzir o dobro da potência, algo que segundo ele iria revolucionar por completo os conceitos de mecânica e termodinâmica até então existentes e que lançaria a América á conquista desse continente ainda selvagem que era o seu e do século 20 que a passos largos se aproximava sorrateiro prestes a assassinar o seu predecessor sem a mínima dó nem piedade.

Houve quem levasse ao extremo a ideia e imaginasse carruagens que dispensassem cavalos e movidas com esse engenho; outros ainda mais ousados divagam sobre se tal maravilha não poderia até levar o homem e a América á conquista dos céus, que desde há milénios eram domínio indiscutível da brava águia e do veloz falcão.

Se a ideia era praticável ou não isso de pouco importava, Vachel-Carling havia conseguido em muito pouco tempo que aquelas bravas gentes fizessem algo que há muito haviam esquecido: Sonhar! Sonhar sem ter por limite restrições pré estabelecidas e nunca antes combatidas. Sonhar mais vasto que o horizonte e mais alto que o próprio céu!

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